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T e x t o s & T e x t u r a s

Cântico dos cânticos

Uma introdução

Luiz Carlos Ramos

42-16639775

“O amor é mais forte do que a morte”
(Ct 8.6)

 

Autoria e datação

O trocadilho com os nomes Salomão (pacificador – cf. 1.1) e Sulamita (pacificada – cf. 6.13) favoreceu a suposição de que os poemas reunidos no livro intitulado Cântico dos cânticos teriam sido escritos pelo rei hebreu do mesmo nome, e retrataria inclusive seu casamento com a filha de um certo Faraó (cf. 1Rs 3.1). 

Uma leitura atenta, no entanto, logo deixa claro que a voz predominante no livro é a de uma mulher camponesa que troca confissões e declarações de amor com seu amado, um pobre pastor de ovelhas. É a mulher que abre e que encerra o livro. Ela tem a primeira e a última palavra.

Daí, parece lógica a dedução de que é uma mulher a autora/compiladora do livro. De fato, não se trata de um livro íntegro, coeso. Parecem mais fragmentos de poemas reunidos. Talvez entendamos melhor se compararmos a fotografias (“flashes”) ou cenas gravadas, mas descontínuas, que retratam diferentes etapas e fases da relação de um casal apaixonado.

Por essa razão também é difícil precisar a data desses escritos, pois parecem conter elementos (gírias, jargões, expressões) característicos de diferentes épocas (da mesma maneira que se pode identificar a moda, própria de diferentes períodos, pelas fotos que tiramos ao longo dos tempos). Há quem sugira períodos mais remotos, como o séc. V a.C., enquanto outros sugerem data mais recente, por volta do séc. III a.C. Por tratar-se, provavelmente, de compilação de uma tradição culturalmente enraizada entre o povo, é provável que esses poemas tenham sido coletados ao longo desse largo período.

Pode-se afirmar com alguma certeza, portanto, que o livro não foi escrito pelo rei Salomão; que o olhar é principalmente feminino; que o livro trata revolucionariamente do tema do amor, num período em que os casamentos eram arranjados e no qual as mulheres não tinham autonomia; que o livro apresenta uma mulher que se faz sujeito da sua história de amor e senhora da sua sexualidade.

Interpretações

Nenhum escrito bíblico teve interpretação tão controversa. Há quem julgue que o Cântico entrou no cânon por engano, por um cochilo dos teólogos que estavam de plantão na ocasião. Tudo por causa do elemento erótico e das referências explícitas à sexualidade (conquanto nunca pornográficas) que caracterizam o livro. E da equivocada idéia de que Deus não é mencionado no livro, sem contar que a relação sexual retratada não visa à procriação.

As justificativas, ou não, para a manutenção dos Cânticos no cânon podem ser resumidas em 5 principais linhas hermenêuticas[1]: 1) A interpretação alegórica (séc. I. d.C.), que defende que a relação retratada no livro não se refere propriamente àquela que se dá entre um homem e uma mulher, mas à que se dá entre Deus e o seu povo, ou entre Cristo e a Igreja, ou a que houve entre o Espírito Santo e Maria, ou entre o divino e a alma humana, ou aquela entre Salomão e a sabedoria. 2) A interpretação cultural, que o considera uma tradução de uma liturgia pagã do Oriente Médio relacionado a ritos de fecundidade e às festa do Ano Novo. 3) A interpretação dramática, que pressupõe não dois, mas três personagens, o pastor e a camponesa, que se amam, e que resistem ao assédio do rei (Salomão), que a quer tomar pela força. Os intérpretes aqui, conquanto não neguem o caráter erótico, desfocam o olhar para o tema da fidelidade dos amantes. 4) A interpretação naturalista, que considera o livro uma coletânea de poemas de amor e canções populares comuns nas cerimônias nupciais semitas. 5) A interpretação combinada, que leva em consideração vários elementos das anteriores.

O fato incontestável, no entanto, é que esse é um livro que fala de amor. Ora, se Deus é amor, o livro todo é uma grande referência ao Criador. No meu entender, essa é razão mais do que suficiente para que o livro figure no cânon.

Temas “escondidos” no Cântico

“Ora, um e outro, o homem e sua mulher,
estavam nus [no jardim] e não se envergonhavam.”
(Gn 2.25)

Os temores resultantes de uma cultura de depreciação e “pecaminosização” do sexo vêm impedindo gerações, há mais de 2500 anos, de usufruir desse riquíssimo e canônico escrito bíblico. Não fora o nosso olhar preconceituoso, poderíamos abrir inúmeras portas para uma abordagem dos temas relativos à relação entre um casal que se ama.

Dentre esses temas, gostaria de relacionar alguns: Preconceito de gênero, raça e cor; relações assimétricas etárias e econômicas; tabus sexuais (incesto e escravidão sexual, masturbação ou sexo solitário, sexo e violência, sexo em público, fetichismo, voyeurismo e romantismo); e ainda erotismo versus pornografia; frustração e satisfação sexual, entre outros.

A protagonista, menina cujos peitos ainda estão em formação, é usada, talvez abusada, pelos irmãos mais velhos, que a obrigam a servi-los cuidando das vinhas deles em detrimento da sua própria (vinha é, no livro, um dos eufemismos para a sexualidade). Ela está queimada do sol, porque é obrigada a trabalhar para os irmãos. Ela se apaixona por um moço pobre, talvez miserável (os pastores estavam na base da pirâmide social, abaixo da linha da pobreza). O rei quer levá-la para o seu harém, mas ela se recusa terminantemente, e prefere ficar com o homem a quem ama. Ela descreve sua busca ansiosa pelo amor, relata como o buscava na solidão do seu quarto, e ainda conta como  fora assediada por “homens rudes da cidade”, até que finalmente encontrou o grande amor da sua vida. Boa parte dos versos são dedicados à descrição contemplativa da pessoa amada e às referências a fragrâncias, sabores, sons e texturas do amor. É o erotismo do olhar, do olfato, do paladar, da audição e do tato. Enquanto alguns versos são confissões de pura intimidade, da privacidade da alcova, outros são exultações públicas de um amor que não cabe em si, e transborda contagiando aqueles que fazem parte do seu círculo de amizade e lhe são próximos.

Para que serve esse Cântico

Há quem pergunte: Para que serve esse livro? E a resposta é: Para nada… e para tudo! Pra nada, se for lido sem paixão, sem desejo, sem amor. Pra tudo, se estivermos apaixonados e embriagados de amor.

Esses poemas servem para serem lidos com a pessoa amada. Servem para inspirar uma relação a dois, apaixonada e apaixonante. Servem como “curso de noivos” para aqueles que estão se preparando para casar. Servem de texto litúrgico para casais que queiram realizar suas núpcias ou celebrar suas bodas. E servem até para aprofundarmos nosso conhecimento de Deus, sim, porque se “Deus é amor”, quanto mais aprendermos a amar, mais aprenderemos de Deus.


[1] cf. Cântico dos cânticos: Introdução. In:  Bíblia Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.

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