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T e x t o s & T e x t u r a s

“Lex orandi lex credendi”

A lei da oração é a lei da fé

 Luiz Carlos Ramos

A rigor, se entende que a Teologia molda a Liturgia, mas nem sempre nos damos conta de que o inverso também é verdadeiro. Segundo Ronald Byards, a Liturgia molda a Teologia de duas maneiras: Primeiramente, a liturgia de uma comunidade dá corpo e expressa uma teologia intrínseca, mas também molda uma forma de crença. Às vezes isso se dá intencionalmente, outras, não. Em segundo lugar, nenhuma teologia, que não ofereça suporte ou contribua para  o culto (i.e., para a liturgia) da comunidade, será, em longo prazo, aceita e assimilada pela igreja (cf. BYARDS, 2008).

Como sempre insiste o biblista Frei Carlos Mesters, a Bíblia nasceu do povo e tem que ser devolvida ao povo. Isso implica que a Teologia (Sistemática, Bíblica e Pastoral), que se constitui a partir da Revelação, tem que estar a serviço do povo, caso contrário, a transformamos num simples “livro antigo”. Ora, o que impede que os textos sagrados se reduzam a velhos textos caducos é o Espírito celebrativo, pelo qual a Bíblia nos ajuda a interpretar a Vida e a construir comunidade. Bíblia-fé-e-comunidade (“comunidade” entendida aqui como partilha celebrativa, cf. Lc 24.30-35) são, no dizer de Mesters, como café-leite-e-açúcar: uma vez misturados já não podem ser separados, formam uma unidade.

Ora, grande parte dos escritos bíblicos são textos celebrativos: cânticos, salmos (louvor, lamento, ação de graças), orações, pregações, testemunhos, apelos…

Na Igreja Primitiva, foram necessários 59 anos de tradição litúrgica até que um Credo fosse formulado, e mais 300 anos para o estabelecimento do Cânon Bíblico.

Vale lembrar o que Rubem Alves afirma no livro Dogmatismo & tolerância a respeito da fé celebrada que precede a fé sistematizada: a Reforma protestante foi cantada antes de ser entendida, isto é, o povo teve acesso aos ensinos da Reforma primeiramente porque a cantava celebrativamente. A conformação de uma Teologia Reformada mais sistematizada é entendida como ato segundo (cf. ALVES, 2004).

Depreende-se, pois, que a celebração é fundamental (é Teologia Primeira). Assim sendo, pode-se afirmar que se a Teologia não servir à doxologia da igreja não terá sobrevida fora dos círculos intelectuais e acadêmicos. A fé cristã é antes de tudo celebrada e depois, crida. Se algo não puder ser concelebrado, não poderá ser crido. Uma vez mais é o Frei Carlos Mesters quem sábia e singelamente diz: “Estudo só é tijolo, o cimento é a celebração” (MESTERS, 2009).

O Lecionário integra Teologia e Liturgia

O lecionário trienal, em sua versão ecumênica, reformulada na década de 1970, tem sido adotado de maneira crescente pelos pastores e pastoras das principais igrejas cristãs em todo o mundo. Como relata Byards, no mesmo artigo acima citado, pesquisas feitas nos Estados Unidos da América demonstram que 99% dos episcopais anglicanos, 98% dos luteranos, 87% dos pastores da Igreja Unida de Cristo, 69% dos metodistas, 61% dos presbiterianos, usam o lecionário sempre ou na maioria das vezes para a preparação de suas prédicas e liturgias semanais. A adoção do lecionário pelas principais igrejas históricas vem num crescente, desde a década de 80. De maneira bem mais tímida, o mesmo vem acontecendo no Brasil.

A consequência disso é que muitos temas, outrora solenemente omitidos — tais como a escatologia, a primazia do reinado de Deus ou a opção pelos pobres —, por parecerem obscuros, antipáticos ou desfavoráveis, a alguns pregadores e pregadoras, voltaram à baila nos púlpitos cristãos. E, com isso, a igreja ganha e passa a receber alimento espiritual de maior qualidade, profundidade e consistência.

“Lectio continua” e “lectio selecta”

A rigor, o lecionário trienal oferece quatro indicações de leitura para o culto semanal, sendo duas tomadas da Bíblia Hebraica (incluindo um Salmo), e duas do Novo Testamento (incluindo um texto do Evangelho). Respectivamente, as leituras, ou lições, são assim designadas: “Primeira Leitura”, “Salmódia” (também concebida como “Canto Interleccional”), “Leitura da Epístola” (ou “Segunda Leitura”) e “Leitura do Evangelho”.

O lecionário, portanto, é uma proposta de plano de leitura e pregação que pretende abordar a Bíblia como um todo. Indica leituras selecionadas (lectio selecta) para cada semana, organizadas, tanto quanto possível, tematicamente, principalmente nas ocasiões festivas (Ciclo do Natal e Ciclo da Páscoa). Em outras ocasiões, principalmente ao longo do Tempo Comum, adota-se o critério da leitura continuada (lectio continua), com o objetivo de possibilitar à comunidade um conhecimento amplo de toda a Bíblia, no curso de três anos.

Ao longo da história da igreja, os pregadores e pregadoras que mais se destacaram adotavam algum plano de pregação, para nortear seu labor como ministros da Palavra. Os judeus, na sinagoga, tinham desde há muitos séculos, o costume de ler todo o livro dos Salmos em três anos. Sendo 150 o número dos salmos, o plano previa a leitura de um salmo por semana. Como há cerca de 50 semanas em um ano, três anos somam providencialmente 150, o mesmo número dos Salmos.

Sabe-se que os reformadores do século XVI adotavam algum plano de pregação, preferindo a exposição de textos bíblicos completos (perícopes e mesmo livros inteiros). Empregavam, portanto, o método da lectio continua; mas nas datas festivas maiores (Páscoa, Pentecostes e Natal) adotavam a lectio selecta — pois não faria sentido se, em pleno Domingo de Páscoa, por exemplo, o pregador se pusesse a pregar sobre um assunto qualquer, sem relação com a ressurreição, sendo esta a mensagem central do cristianismo.

Muitos dos escritos que nos chegaram de Calvino e Lutero, entre outros, principalmente seus comentários bíblicos, são essencialmente resultado de anotações de prédicas semanais. Tanto é assim que desenvolveu-se uma prática que perdura até os dias de hoje em algumas igrejas de tradição reformada, que é chamada de Reader’s Service (lit., “Culto da Leitura”), segundo a qual, os membros de uma determinada congregação se reúnem meia hora ou uma hora antes do culto principal para ouvir a leitura contínua de textos bíblicos criteriosamente escolhidos.

Até o século XVII, não havia, a rigor, a prática da pregação temática descontínua. Esta só viria a se tornar popular com os avivalistas do século XVIII e XIX. Ora, sermões temáticos privilegiam idéias e temas e não tanto os livros bíblicos. Isso deu ensejo a uma prática homilética descontinuada, fragmentada, e mais sujeita às idiossincrasias, humores, e condicionamentos ideológicos próprios de cada pregador ou pregadora. Temas que não fossem do interesse particular de certo pregador seriam sistematicamente omitidos e sonegados à sua congregação.

Concluindo…

Pode-se afirmar, a partir do exposto, que qualquer plano de pregação é melhor que nenhum. O amadurecimento na fé pressupõe familiaridade e relação intensa com os textos sagrados. E esse aprofundamento dificilmente se obtém com uma pregação descontínua, desconexa e aleatória. É preciso saber de onde viemos, para que possamos ter noção de para onde vamos (e para que tenhamos certeza de estarmos indo para frente). O lecionário trienal nos dá esse roteiro. É inteligente, dinâmico e flexível. Ao mesmo tempo em que nos “obriga” a abordarmos todos os grandes temas bíblicos — até aqueles que porventura não nos agradem tanto —, também nos permite que, eventualmente, optemos por outros, mais apropriados a certas ocasiões impostas pela premência do cotidiano — isso para o  caso de nossa criatividade não dar conta de relacionarmos os textos indicados pelo lecionário com tais situações.

O lecionário, portanto, é uma útil ferramenta para o nosso trabalho como pregadores e pregadoras da Palavra (e não de idéias, simplesmente). Um trabalho que integra Fé e Vida, Palavra pregada e Palavra Crida, Teologia e Liturgia, Oração e reflexão. Afinal: “Lex credendi lex orandi” — a lei da fé é a lei da oração!

Referências

ALVES, R. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004. 

BYARDS, R. P. An Advent Gift: The Eschatological Promise. Interpretation: a journal of Bible and Theology. v. 6. n. 4. Richmond: UTS-PSCE, 2008. p. 372-395.

MESTERS, F. C. Leitura popular da Bíblia. Rumos da Teologia Bíblica nos caminhos da América Latina e Brasil. Centro Universitário São Camilo (CETESP)2009.

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“Lex credendi lex orandi””: A lei da fé é a lei da oração by Luiz Carlos Ramos is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil License.

3 Comentários

  1. Olá professor.
    Infelizmente não consegui baixar a aula inteira, só assisti 20 minutos e ….acabou-se.
    Mas é muito bom ler um bom texto. Obrigado.

  2. Oi professor,
    que bom ter ao alcance um lecionário que nos indique com mais precisão o vamos e precisamos dizer e os outros ouvirem,de forma construtiva e edificante.

  3. Olá professor,
    Depois de assistir a sua aula essa semana e ler novamente esse texto, ficou mais claro o meu entendimento do assunto.

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