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T e x t o s & T e x t u r a s

A Igreja que queremos

A nobreza da comunidade hermenêutica (At 17.1-15)

Luiz Carlos Ramos
(Ao professor, teólogo e amigo, Dr. Juan Stam,
com gratidão pelas suas ricas orientações hermenêuticas)

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Introdução

Permitam-me recontar-lhes, resumidamente, a conhecida Parábola dos urubus e os pintassilgos: Certa feita, os urubus tomaram o poder na floresta e impuseram seu estilo de vida a todos os animais. Sua culinária, sua moda, sua estética e mesmo suas preferências musicais tornaram-se o padrão e a referência para todos. Os pintassilgos, muito cordatos, esforçavam-se sobremaneira para corresponder às exigências dos urubus. Entretanto, os pobres pintassilgos não conseguiam se acostumar com o cardápio de carniça que deveria substituir sua dieta de frutas, tampouco conseguiam andar como os urubus, reproduzir-lhe os requebros e os grunhidos que os urubus chamavam de música. Observando os desajeitados pintassilgos, os urubus concluíram sumariamente: “Não adianta. Um pintassilgo sempre será um urubu de segunda categoria”.

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Esta estória, escrita por Rubem Alves, demonstra muito bem como todos nós procuramos modelos para pautar nosso estilo de vida. E os há de toda espécie. Uns mais para urubus, outros mais para pintassilgos. Obviamente, alguns desses modelos nos fascinam e seduzem mais que outros.

Entretanto, a igreja chamada cristã tem nas Escrituras e no testemunho dos primeiros cristãos o referencial para sua fé e para sua prática. E esta é uma oportunidade privilegiada para refletirmos sobre nossa identidade e decidirmos sobre a igreja que queremos. Um slogan de fundo positivista, aludindo ao que é ou não possível, reza: se podemos sonhar algo, então podemos realizá-lo! Se isso for verdade, só poderemos construir a igreja ideal se, primeiro, pudermos imaginá-la. Esta é nossa pretensão: a partir do texto lido, idealizar a igreja da qual teríamos orgulho.

No texto de Atos 17, o autor deixa transparecer um juízo de valor que apresenta a Igreja em Beréia como sendo mais nobre que a de Tessalônica. Numa leitura atenta, podemos ver como a comunidade de Tessalônica se mostrou invejosa, intolerante, violenta, incapaz de fazer auto-crítica, hipócrita, incoerente, manipuladora, corrupta entre outras “qualidades”. Tessalônica era a comunidade da qual teríamos vergonha. Mas, a poucos quilômetros dali, uma outra igreja entrou para a história, pela pena de Lucas, recebendo os elogios que toda igreja gostaria de receber para si. Vejamos, então, quais as características que fizeram de Beréia uma igreja mais nobre. Primeiramente, Beréia era,,,

… Uma comunidade aberta

Uma igreja aberta é:

Dialógica: Beréia, ao contrário de Tessalônica, era uma comunidade aberta ao diálogo, pois está registrado que ela acolhe Paulo e Silas e se dispõe a conversar com eles (dieleksato). Em Tessalônica havia ordens, leis e condenações. Em Beréia: conversa, diálogo e respeito.

Ávida da Palavra: A comunidade de Beréia tinha sede da Palavra de Deus encarnada (cf. v. 11b: “receberam a palavra com toda avidez”). Em Tessalônica a Palavra de Deus era ocultada pela tradição. Em Beréia a Palavra inovadora de Deus fecundava e dinamizava a tradição.

Acolhedora do novo: Disposta a ouvir as novidades trazidas pelos missionários, a comunidade de Beréia estava aberta a novas experiências e a novos desafios (cf. v. 11b). Enquanto Tessalônica prendia, torturava e expulsava seus profetas, a comunidade de Beréia os acolhia, protegia e sustentava.

Mas, mais do que aberta, Beréia era…

… Uma comunidade madura

Uma igreja madura é:

Crítica (com senso crítico): Os bereianos e bereianas estavam abertos para as novidades, mas sem ingenuidade. Queriam conferir tudo nas Escrituras para ver se as cousas são de fato assim (cf. v. 11c). Se, por um lado Tessalônica rejeita, de saída, a mensagem dos missionários, os bereianos estão longe de, simplesmente, engolirem qualquer “sapo”. O grande cientista Karl Sagan costumava dizer: “devemos ter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto do cérebro cair para fora”. Por isso a comunidade de bereia não vai atrás de qualquer novidade, não se ilude com a moda religiosa, não se embriaga com as novidades das paradas de sucesso, nem se deixa enganar por eloqüentes animadores de auditório. Diante da novidade propõe: “Vamos ver se as coisas são de fato assim, vamos conferir nas Escrituras Sagradas”.

Atualizada (preocupada com sua “reciclagem”): A expressão “dia-a-dia” mostra como eles liam e reliam as Escrituras aplicando-as ao seu contexto e à sua vida, atualizando a sua mensagem para o dia de “hoje” (isto é o que se pode chamar de “aggiornamento da igreja”). A Palavra não foi feita para ser lida apenas, dizia um velho pastor, mas para ser estudada. No início, nos alimentamos com leite, mas depois precisamos de alimento sólido para crescermos em estatura (quantidade)  e graça (qualidade).

Constante (com uma fé que vai além do ritual formal do fim-de-semana): Enquanto os de Tessalônica só se reuniam nos sábados, os bereianos viviam sua fé todos os dias. Tessalônica se ocupava das Escrituras uma vez por semana, mas a comunidade de Beréia a vivia todos os dias e buscava nas Escrituras a orientação necessária para viver a vontade de Deus diariamente.

E porque era aberta e madura, Beréia era…

… Uma comunidade missionária

Uma igreja missionária é:

Ortoprática: A comunidade de Beréia não somente era ortodoxa (conhecia sua tradição), era, também, ortoprática, i.e., todos viviam de acordo com o que criam. Havia uma coerência e uma conseqüência entre fé e prática (cf. vv. 12 e 14-15).

Organizada: Expressões como “promoveram sem detença…” e “os responsáveis por Paulo levaram-no…” mostram como os bereianos eram articulados, habilidosos, eficientes e ágeis na ação missionária. Se tivessem uma estrutura excessivamente pesada, dependendo de complicados conchavos políticos e intrincadas votações em onerosas assembléias, talvez a missão de Paulo e Silas tivesse sido abortada no capítulo 17 do livro de Atos.

Solidária: Diante da perseguição promovida pelos intolerantes tessalonicenses, os bereianos não se eximiram de suas responsabilidades, não lavaram simplesmente as mãos, antes, arregaçaram as mangas para proteger, financiar e promover Paulo, Silas e Timóteo. Assim fazendo, promoviam, em última instância, a própria ação missionária da Igreja.

Conclusão

Afinal, que tipo de Igreja queremos ser? Qual a nossa mais legítima identidade? Quando simplesmente copiamos estranhos modelos, perdemos nossa identidade e passamos a ter vergonha do nosso nome, mas se revitalizarmos nossa tradição à luz da Palavra de Deus, teremos orgulho de sermos o que somos – e, talvez, descubramos, afinal de contas, que não é tão ruim, assim, ser pintassilgo. A conversão, verdadeiramente impressionante para nossos dias, seria a de nossas comunidades serem menos Tessalônica e mais Beréia: Uma comunidade que tem nas Escrituras Sagradas seu mais forte referencial. Uma verdadeira e nobre comunidade hermenêutica: aberta, madura e missionária.

Assim Deus nos ajude!

 

(Este sermão foi pregado pela primeira vez na Igreja Metodista em Jundiaí, no ano de 1994, e em Piracicaba, no ano de 1998, por ocasião do Concílio da 5a. Região da Igreja Metodista, e posteriormente em varias outras ocasiões, inclusive como primeiro serão na IM de Pirassununga, aos 2 de fevereiro de 2014)

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4 Comentários

  1. Que Mensagem!

  2. Como sempre o Prof. Luiz, de maneira sábia e clara, nos transmite uma mensagem edificante que nos desafia a vencer a “ditadura evangélica” do nosso tempo.

  3. Um texto claro, didático. Pensar a igreja de hoje a luz das Santas Escrituras, exige mais do que ler o Texto Sagrado, precisamos escrutar a fim de sabermos o que o texto realmente tem a nos revelar… E isso de fato aconteceu nesse exercício exegético, hermenêutico e homilético.

  4. Muito bom!!!!!!

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