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T e x t o s & T e x t u r a s

Espiritualidade e convívio universitário

 Luiz Carlos Ramos

 © Paul Cox/arabianEye/Corbis (royalty-free)

Universidade lembra Universo, universal, que por sua vez remete à oikoumene, “todo o mundo habitado”. O susto que a gente leva quanto ingressa na Universidade tem a ver em parte com a transcendência de um ambiente mais doméstico e íntimo vivido nas comunidades de fé, para vislumbrar um horizonte universal e ecumênico experimentado no mundo acadêmico.

Esse susto pode tornar-se crise. E dentre as muitas crises vividas pelo alunado, podemos destacar aquelas relativas ao conflito entre e razão, tão estimulado e exagerado no mundo acadêmico.

Novas cosmovisões — fé x razão

Quanto mais pretensiosas forem as nossas verdades, mais sectários nos tornamos. De um lado, se entrincheira a religião e, de outro, a ciência, ambas com suas numerosas seitas. E é próprio das seitas pelejarem, guerrearem entre si. Cada qual com a pretensão de submeter a outra e deter o monopólio da verdade.

Só que, na prática, as coisas funcionam mais ou menos como na lógica semita (conforme aprendi do meu colega Prof. Paulo Garcia): eu contra meu irmão; meu irmão e eu contra o nosso primo; nosso primo, meu irmão e eu contra o estrangeiro.

No dia a dia, a gente age da mesma forma para enfrentar os conflitos no âmbito da fé e da razão: brigamos na igreja local contra grupos de quem discordamos; mas nos unimos como tradição religiosa (por exemplo, como protestantes) para confrontar outras tradições (como os católicos); e ainda nos unimos como cristãos (católicos e protestantes), para lutar contra outras expressões de fé (islamismo, budismo, espiritismo…); e por fim, nos unimos como pessoas religiosas para confrontar as não religiosas (cientistas, ateus…).

Isso prova que, quando queremos (ou precisamos), não há barreiras que não possam ser quebradas, acordos que não possam ser feitos, separações que não possam ser unidas. Quanto menos universal nossa visão, menos possibilidades de unidade na prática.

Isso nos provoca a pensar que até a divisão entre religião e ciência pode ser repensada. Talvez possamos ser aliados na luta contra outros deuses (ou demônios). Nós, religiosos, tendemos a olhar desconfiados para a ciência porque ela se parece muito com Deus. Mas a ciência não é o único novo deus que encontramos na Universidade. Novas visões geram sempre novos conflitos, e novos conflitos provocam novas conversões. Há uma infinidade de novos deuses (e novos demônios), todos ávidos e empenhados em nossa conversão. Dentre eles podemos identificar:

  • O deus Mercado, que quer nos converter a todos em consumidores (Ah, se tivéssemos a compreensão de Gandhi. Conta-se que, quando foi levado para visitar um shopping center, em Londres, observando as vitrines, exclamou: “Puxa vida, quantas coisas das quais eu não preciso!”)
  • O deus Entretenimento, que quer que abramos mão da realidade, e nos convertamos em meros espectadores da própria vida.
  • O deus Prazer, que nos promete a juventude eterna, mas com prazo de validade curto e sem garantia.
  • O deus Violência, que vive nos ameaçando com um Juízo Final prematuro. Etc.

Enfim, esses, entre tantos outros, são todos deuses muito intolerantes e anti-ecumênicos. E é quase impossível não tropeçarmos em seus suntuosos templos, inclusive nos campi universitários, pois são deuses que também aspiram à onipotência, à onipresença e à onisciência.

Igreja & Universidade: semelhanças e diferenças

Por outro lado, talvez não devêssemos nos assustar tanto com a Universidade, afinal, na essência, ela não é assim tão diferente da Igreja Local. Se não, vejamos:

  • Na Igreja, a gente se filia.
    Na Universidade, a gente se matricula.
  • Na Igreja, a gente assiste aos cultos.
    Na Universidade, a gente freqüenta as aulas.
  • Na Igreja, a gente se senta pra ouvir o professor da fé.
    Na Universidade, a gente se senta pra ouvir o pregador da ciência.
  • Na Igreja, a gente tem que contribuir com o dízimo.
    Na Universidade, a gente tem que pagar a mensalidade.
  • Na Igreja, a gente tem que aprender as doutrinas da fé.
    Na Universidade, a gente tem que professar os dogmas da ciência.
  • Na Igreja, a gente tem que observar os preceitos divinos.
    Na Universidade, a gente tem que cumprir os mandamentos do método cartesiano, ou do histórico crítico.
  • Na Igreja, a gente é excomungado se não cumpre as normas eclesiásticas.
    Na Universidade, a gente é expulso se não cumpre o regulamento acadêmico.
  • Na Igreja, a gente participa dos ritos e liturgias eclesiais (batismos, eucaristias, funerais….). Na Universidade, a gente participa dos ritos e solenidades acadêmicas (aulas inaugurais, formaturas, bancas, concessão de títulos…).

Ora, conquanto a Igreja à qual assistimos seja local, e a Universidade na qual estudamos se pretenda universal, cada igreja local tem o dever de ter um espírito universal — pois o Evangelho é para todos: “até os confins da terra” (At 1.8) —; e a Universidade tem a obrigação de cumprir sua vocação social — que é a de prestar serviços à comunidade local.

Como se vê, as coisas não são muito diferentes lá e cá.

Mesmo assim, há algumas diferenças entre Universidade e igreja local para as quais eu gostaria de chamar a atenção:

  • Conquanto a Universidade se ocupe de formar profissionais de sucesso, é a igreja que oferece o suporte quando experimentamos o fracasso.
  • Enquanto a Universidade forma pessoas para serem vencedoras, a igreja pode ajudar a nos renovar a esperança quando sofremos as inevitáveis derrotas da vida.
  • A Universidade nos prepara para acertar, a igreja nos ajuda a corrigir o rumo quando erramos.
  • A Universidade nos oferece uma série de crenças sobre as crenças, na igreja a gente celebra a própria essência da fé.
  • A Universidade nos ensina a fazer o certo, a igreja nos ensina a fazer o bem.
  • Enquanto a Universidade prepara as pessoas para ganhar (bens, fama, prestígio, status…), a igreja nos consola quando perdemos, inclusive quando perdemos as pessoas que amamos.

É verdade que nem todas as igrejas e nem todas as universidades são assim. Mas essas idéias servem para demonstrar que, conquanto semelhantes, essas duas instituições têm vocações deferentes.

Essas diferenças, entretanto, não implicam na exclusão sectária de uma ou de outra. Mostram, antes, justamente o conjunto que formam, a necessidade que uma têm da outra. Porque na vida, as diferenças somam e todos nos complementamos, inclusive a Igreja à Universidade e a Universidade à Igreja.

Concluindo…

Se a escola é uma comunidade de crenças na vida (na ciência, no progresso, no conhecimento, na razão…), a vida mesma é uma escola que ensina a própria vida. A vida nos ensina que precisamos uns dos outros, que precisamos umas das outras.

Mas o que é que impede essa comunhão?

No fundo, somos como a cebola do Shrek, uma sucessão de camadas com muitas cascas e pouca consciência da nossa essência. Se fôssemos tão espertos quanto quer a Universidade, e tão sábios quanto a Igreja gostaria que fôssemos, saberíamos que se podemos nos unir em certos casos, podemos nos unir sempre.

Qual é o elemento que engendra e que comporta todas as nossas contradições? A resposta é uma só: a Vida! A vida é a única instância, ou melhor a instância comum a todos nós. E é em torno da vida que nos unimos para defender a própria vida.

A vida é o ponto de encontro dos amigos. Um famoso teólogo e filósofo do século xvii, quando perguntado sobre sua especialidade, respondeu: — Eu, eu sou expert em amizade! O resto é brincadeira de criança, e até isso é mais gostoso em companhia de gente amiga. A Universidade cumpre seu papel quando forma amigos e a Igreja, quando celebra o sacramento da amizade.

Gostaria de concluir com uma afirmação de fé que escrevi há alguns anos, na qual declaro a minha na vida como uma escola:

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina a conhecer as razões e a respeitar os mistérios;

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina a cooperar para construir e a confrontar para resistir;

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina a pensar com o coração e a amar com inteligência;

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina a humanidade divina e a divina humanidade:

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina que a felicidade é um verbo que se conjuga no plural
e que a miséria é o antônimo de Deus;

Cremos na vida como uma escola
que nos ensina a ser e a conhecer,
a fazer e a conviver,
a saber, enfim, transmitir a própria vida,
na força da esperança, com a ternura da paz,
e no compromisso da justiça para todos.

Amém!

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