Menu de navegação de página

T e x t o s & T e x t u r a s

O rico-sem-nome e o pobre Lázaro

Ou o Lázaro que não ressuscitou

Parábola do rico e de Lázaro (Codex Aureus de Echternach)

Parábola do rico e de Lázaro (Codex Aureus de Echternach)

Prédica gravada na Igreja Metodista em Pirassununga – 30.09.2019

Lucas 16.19-31 (LCR adap. da ERAB):

Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, banqueteava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de úlceras, que era deixado junto aos portais da casa do rico; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam do cenáculo do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as feridas.

Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No reino dos mortos, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu colo. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós.

Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos.

Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.


Introdução

O Evangelho de Lucas foi escrito num tempo no qual a pobreza e a humilhação marcavam a realidade da Igreja. O pobre Lázaro (= Deus é meu socorro)  retrata perfeitamente essa realidade. Fica evidente, por um lado, que o evangelista se dirige, profeticamente, a seus leitores ricos, tão familiarizados com histórias análogas que circulavam, tanto entre egípcios, como gregos e também entre judeus. Esses relatos são representativos de conjecturas mais ou menos comuns no Mediterrâneo, desde séculos antes de Cristo, sobre a vida pós-sepultura. Por outro lado, a mensagem desta história também é relevante para a maioria humilhada e empobrecida de integrantes da comunidade de fé, porque reafirma a vida no reino, na qual o código de honra e vergonha se inverte.

Não obstante fale de mortos, o relato se dirige aos vivos. Engana-se gravemente quem pretenda formular a partir dele teorias ou dogmas sobre o postmortem. A grande pergunta aqui é sobre a vida antes da morte, e seus destinatários são os vivos.

A estrutura literária é quiasmática (paralelismo invertido):

No reino dos vivos

A  — A vida do rico (por cima)

B — A vida do pobre (por baixo*)

B’ — A morte do pobre (para cima)

A’ — A morte do rico (para baixo)

No reino dos mortos

A — O rico no Hades (por baixo)

C — Viu Abraão e Lázaro em seu seio (por cima)

A’ — O rico implora pela primeira vez (tem sede*)

C’ — Primeira resposta negativa de Abraão

A” — O rico implora pela segunda vez (interpelar os 5 irmãos)

C” — Segunda resposta negativa de Abraão (eles têm Moisés e os profetas)

A”’ — O rico implora pela terceira vez (conversão)

C”’ — Terceira resposta negativa de Abraão (impenitência mesmo diante do ressuscitado)


No reino dos vivos

No mundo dos vivos, imperam as relações assimétricas de dominação e ostentação. Os ricos estão no topo da pirâmide do poder econômico, político e religioso; enquanto os pobres estão na base.

No relato bíblico, o rico-sem-nome se vestia luxuosamente com roupas (púrpura e linho) que podiam custar três anos de salário de um trabalhador ordinário: o tipo de púrpura aqui referido (porfyra) era obtido a partir de um caracol marinho do qual se extraía uma tintura geralmente reservada para os mantos de reis e deuses. No Império romano e bizantino chega a ser privilégio exclusivo dos imperadores. O linho aqui mencionado (byssos) era um tipo particularmente delicado, de procedência egípcia ou da índia, usada para a confecção da túnica que ia sob o manto (cf. BOVON, 2004, p.150-151). Em flagrante contraste, o pobre Lázaro tinha a pele revestida de outro tipo de púrpura: as pústulas, úlceras e feridas.

O rico-sem-nome realizava banquetes suntuosos diariamente. Na época não se usavam talheres ou guardanapos, de modo que os comensais costumavam servir-se com as próprias mãos, e para limpar os dedos utilizavam nacos de pão, que eram atirados para fora pela porta ou janela. Esta certamente era uma casa suntuosa, o que se confirma pela referência ao “pórtico”, onde jazia o pobre Lázaro. Essa expressão refere-se a um local coberto à entrada de um edifício imponente, de um templo ou de um palácio. Normalmente, nessas casas, o cenáculo, sala usada especialmente para as ceias e banquetes, ficava em um piso superior (em espanhol se traduz “cenáculo” por “aposento alto”). Podemos imaginar Lázaro e os cães, em baixo, sob a janela, esperando e disputando os nacos de pão defenestrados e temperados pelos dedos dos convivas.

Temos então, a seguinte cena: lá cima, um rico-sem-nome farto e folião; e, lá em baixo, o pobre Lázaro faminto e dolorido.

No reino dos mortos

Mas a morte, que não faz acepção de pessoas, recolheu a ambos igualmente. Não obstante, a história que Lucas nos dá a conhecer trata de mostrar como, a partir daí, as coisas se invertem.

O pobre Lázaro morre e é “levado pelos anjos para o seio de Abraão”. Essa expressão era reservada para narrar as circunstâncias da morte de um justo. Ora, para descrever a situação do rico-sem-nome, bastou dizer que “foi sepultado”. Supõe-se, pelo paralelismo invertido, que aquele que estava por cima, agora fica por baixo, e o pobre Lázaro, que antes ficava por baixo, é levado para cima. Tanto é assim que o texto menciona o fato de que o rico-sem-nome, em tormentos lá do Hades (o reino dos mortos), “ergueu os olhos” e deu com Lázaro aconchegado, confortavelmente, nos braços de Abraão.

A situação de conforto e tormento se inverte, bem como as posições de quem está por cima e por baixo. Antes o pobre Lázaro passava fome, agora o rico-sem-nome passa sede. Quem antes clamava em vão por misericórdia, era o pobre Lázaro, agora quem faz isso é o rico-sem-nome.

A intransigência de Abraão

Abraão é um pai inflexível. Nega-lhe as reiteradas súplicas. A resposta legalista de Abraão às súplicas do rico, baseada num sistema jurídico meritório, retributivo e intransigente, contrasta com a pregação de Jesus a respeito do reino (e.g: perdoar não sete, mas setenta vezes sete). Isso fica realçado pelo abrandamento progressivo das súplicas: Primeiro, o rico faz um pedido egoísta, quer aliviar a sua sede, e humilha-se suplicando a quem passara tanta fome, no reino dos vivos, que toque-lhe a língua com o dedo molhado. A segunda súplica é menos egoísta, lembra-se da casa do pai e dos cinco irmãos, que pensa em salvá-los de semelhante destino de tormentos. Por fim, seu pedido é ainda mais amplo: “se alguém for a eles dentre os mortos se arrependerão.” A mensagem da ressurreição não somente livraria os seus, mas produziria ou possibilitaria a todos a conversão (metanoia = mudança de mentalidade).

A reticência do evangelho: o outro Lázaro

Curiosamente, se relativizarmos a interpretação desta passagem à luz dos evangelhos como um todo, podemos identificar sutilezas repletas de ironia e perspicácia:

As inversões radicais (metanoia?) são a regra e não a exceção no Reino de Deus: vemos isso em textos como o cântico de Maria; nas parábolas, como a do fariseu e o publicano, a da oferta da viúva pobre, etc.; em ditos como “os últimos serão os primeiros”, “o maior é aquele que serve”, “o maior é uma criança”, “quem perder a vida a ganhará”, etc.

O “Pai Abraão” do reino anunciado por Jesus é mais complacente, e consente em enviar mais de um mensageiro dentre os mortos. Há um Lázaro, nos evangelhos, que ressuscita, mas acaba assassinado; e há o próprio Filho de Deus, que também ressuscita dentre os mortos mas não é bem recebido, o que confirma as suspeitas do outro Pai Abraão de que os irmãos do rico não haveriam de se converter, ainda que alguém ressuscitasse.

O pecado do rico

Qual o pecado do rico? Talvez ele nem tenha sido tão mau assim. Afinal, não expulsou a Lázaro da porta da sua casa, não objetou que este recolhesse o pão que era jogado da sua mesa, não consta que tenha sido cruel ou violento com ele.

Segundo William Barclay (1973, p. 209), o pecado do rico foi não prestar atenção a Lázaro, tê-lo aceito meramente como parte da paisagem, haver pensado que era perfeitamente natural e inevitável que Lázaro estivesse abandonado à dor e à fome enquanto ele nadava na opulência. O pecado do rico era que podia ver o sofrimento e a necessidade do mundo, sem sentir que a espada da dor e da compaixão atravessasse seu coração: via outro ser humano, faminto e dolorido, e nada fazia por ele. Pecou não pelo que fez, mas pelo que deixou de fazer.

E quanto a nós?

Essa narrativa bíblica nos toca diretamente, quer sejamos como o rico-sem-nome, quer como o pobre Lázaro. O evangelho nos adverte quanto às relações injustas e assimétricas, e quanto aos nossos códigos de honra e vergonha.

As inversões evangélicas (conversões!) exigem de nós que nos comprometamos com a transformação do status quo injusto em um status de equidade. É nosso dever promover a conversão de toda e qualquer relação de dominação ou opressão, a começar pelos espaços domésticos e privados (onde talvez os maiores abusos sejam cometidos  impunemente). É nossa obrigação estender essa ação pela superação das desigualdades ao espaço público, e até mesmo à igreja.

De todas as formas, a mensagem de hoje é um convite à mudança, à conversão, à alteração de status. Se porventura somos os que estão por cima, nosso dever é descer para levantar quem está por baixo e transformar a paisagem. Se, de outra forma, somos os que estão por baixo, nosso desafio é deixarmos de ser cenário e passarmos a ser atores protagonistas na construção de um mundo de justiça e equidade.

Descendo uns e subindo outros, quem sabe não nos encontremos em algum lugar no meio do caminho: não no lixo, nem no luxo, mas no Shalom, no Amplexus Pax, no Fraternal Abraço de quem vive em Paz.

 Luiz Carlos Ramos
(setembro de 2013)

___________________________

Para aprofundar:

ARNDT, William F. Bible Commentary: The Gospel according to St. Luke. Saint Louis: Concordia. p. 362-367.

BARCLAY, William. Lucas Volumen 4 El Nuevo testamento comentado. Buenos Aires: La Aurora, 1972. p. 207-209.

BOVON, François. El Evangelho según San Lucas: Lc 15,1-19,27 III. Salamanca: Sígueme. p. 137-166.

CÂNDIDO DE SOUZA, Rômulo. Palavra Parábola. Aparecida: Santuário, 1990. p. 183-187.

PLUMMER, Alfred. The international critical commentary: a critical an exegetical commentary on the gospel according to S. Luke. Edinburgh: T. & T. Clark. p. 391-398.

2 Comentários

  1. Chorei

  2. Maravilhosos. Nem embaixo, nem em cima, mas ao lado.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.