A música no contexto da missão
Luiz Carlos Ramos
Introdução
A música tem caráter universal. Se pensarmos em melodia, harmonia e ritmo, elementos nucleares da expressão musical, podemos constatar que o próprio Universo é música. Dizem os cientistas que as estrelas pulsam, que o cosmo se move harmonicamente, que se se prestar bem a atenção, pode-se ouvir o eco do “big bang”.
E, segundo os poetas, o próprio Deus é música: “No princípio era a música, e a música estava com Deus, e a música era Deus…” (Carlos A. R. Alves). O fato de que, na narrativa bíblica, ao criar o mundo, Deus o faz mediante a sua palavra (“Disse Deus…” – Gn 1.3), já é um indício de que nós somos o resultado de um canto primordial, de um hino primevo, de uma música divina.
Não é de se admirar, então, que se diga que o cântico tenha caráter existencial, na medida em que não somente expressa o “tom” da nossa existência, como tem a capacidade de sugerir, condicionar e até mesmo criar diversas condições vitais.
Um dos mais extensos blocos literários da Bíblia, e que ocupa a região central das suas edições habituais, é o livro dos Salmos. Muito embora se diga que a Bíblia é a Palavra de Deus descida dos céus a nós, particularmente nos Salmos, quem toma essa palavra é o ser humano orante, que eleva aos céus as suas súplicas, as suas dores, os seus louvores, as suas ações de graças. Sabe-se que a maioria dos salmos se prestavam ao canto, particularmente ao canto congregacional. São canções que inspiram e instruem o povo em suas peregrinações, em suas celebrações cúlticas e em seus momentos devocionais.
As Escrituras Sagradas também falam em hinos, os quais a tradição eclesiástica fez questão de preservar e, principalmente, entoar. Os hinos, um pouco diferente dos cânticos e dos salmos mencionados há pouco, têm um caráter teológico profundo e evidente. Expressam as verdades eternas, reveladas para o sustento da nossa fé e o louvor da glória de Deus.
Em diferentes épocas da história da Igreja, particularmente durante os seus períodos de maior crescimento e vigor, foram os hinos evangelísticos que deram o ritmo do testemunho e marcaram o passo do avanço missionário. Tais hinos, de caráter testemunhal, proclamam, em alto e bom som, as boas novas de salvação, e funcionam como arautos do Evangelho de Jesus, chamado Cristo.
A música na Vida: uma questão existencial
A música faz parte da vida. Não há cultura no mundo que não tenha na música uma parte constitutiva de sua formação social. Também é praticamente impossível pensarmos na existência da própria Igreja sem a música. Individualmente, cada um, cada uma de nós poderia traçar uma memória da sua história de vida apenas recordando as músicas que cantava ou ouvia nas diferentes fases do seu desenvolvimento.
Assim, quando uma criança nasce, desde o colo da mãe, é embalada ao som das cantigas de ninar. Na Igreja, essa criança é recebida com afeto por ocasião do seu Batismo que, geralmente, é acompanhado de significativos cânticos que exclamam: “vinde, meninos/as, vinde a Jesus…”. A criança ainda não entende o que se diz, nem o significado das letras das canções que lhe entoamos, mas já reage com evidente expressão de contentamento. Ela não compreende o conceito, mas entende o sentido: ela é bem vinda, ela é amada… A música, nesta fase, é marcada pelo seu caráter celebrativo.
Durante a infância e a puberdade, além do caráter divertido, próprio das canções de roda e todas as que acompanham suas brincadeiras, a música também assume um caráter formativo, pedagógico. As músicas ensinam lições novas e reforçam conteúdos antigos. A música ajuda a se aprender outra língua, a decorar conceitos, e até a assimilar doutrinas.
Quando chega a adolescência e a juventude, a música desempenha um papel mais militante. A música não somente diverte e instrui, mas com freqüência também assume um caráter de confissão de fé. Representa uma “bandeira” ostentada pelo jovem que expressa suas convicções, seu sentimento de pertença a determinado grupo, sua motivação, sua opinião política, seu inconformismo e sua disposição para transformar o mundo.
Quando a paixão se instala de maneira mais duradoura com o namoro, o casamento e, mais tarde, as bodas, busca-se na música a expressão do compromisso assumido (com o cônjuge ou com uma causa). Na idade adulta, o caráter de diversão, de formação e de afirmação, dá lugar a um tipo de relação com a música, inclusive na Igreja, que busca coerência, constância, lealdade, responsabilidade… Canções de caráter volúvel e passageiro já não satisfazem. Busca-se inspiração, não mais nas “paradas de sucesso”, mas nas “canções eternas”, naquelas cuja qualidade estética e significados resistem ao tempo, tal como as pessoas maduras pretendem enfrentar as vicissitudes da vida.
Finalmente, quando chega a velhice, e as lutas contra as enfermidades ganham proeminência, e a morte iminente é a única certeza, a música se reveste de especial significado. Muito ao contrário de serem esquecidas ou descartadas, elas passam a ter força como nunca tiveram. É nessa hora que aquelas canções ouvidas desde a infância, tais como as canções de ninar, as canções de roda, as músicas da juventude… mas principalmente os hinos cantados na Igreja, adquirem uma força e um sentido antes inimaginados. Na hora da dor e da morte, não haveremos de querer aprender cânticos novos, nem de ouvir as novidades das “paradas de sucesso”… Haveremos, antes, de querer retornar aos hinos da nossa infância e da infância da nossa fé, porque essas canções são aquelas cujo caráter de consolação e alento nos ajudarão a transpor os últimos limites da nossa existência.
A música na Igreja: uma questão congregacional
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Como já dito, não se pode conceber a Igreja sem a música. Ela está presente em todas os momentos e de diferentes formas nas várias atividades e expressões eclesiais.
Nas reuniões, mesmo aquelas administrativas, das diversas instâncias da Igreja (crianças, jovens, mulheres, homens, concílios e assembléias…), a música é entoada para marcar o aspecto devocional e comunitário do encontro. O cântico evidencia o fato de estarmos diante de Deus e de que buscamos nEle as forças para os nossos atos. Ao cantarmos a uma só voz, expressamos a nossa comunhão e a nossa disposição para atuarmos em cooperação.
Nas atividades educativas da Igreja, tais como a Escola Dominical, cursos de formação e grupos de discipulado, o cântico revela seu aspecto didático-pedagógico. Não se canta o que está em contradição com os ensinamentos propostos (pelo menos não se deveria!), ao contrário, os cânticos inspiram, confirmam e reafirmam os princípios teológico-doutrinários assumidos e ensinados pela Igreja.
Mas é principalmente nos cultos que a música revela toda a sua força e sentido. Sendo o culto o encontro celebrativo entre Deus e o ser humano, isto é, entre o eterno e o efêmero, entre o infinito e o finito, a música pode muito bem ser entendida como uma maravilhosa síntese desse encontro: a sublimidade da melodia, a beleza da harmonia e o envolvimento proporcionado pelo ritmo, tudo isso associado a sentido expresso pela letra, revelam o aspecto litúrgico daquilo que se canta nos cultos. Além disso, a música estabelece um vínculo como raramente se consegue entre razão-emoção-afetividade. A música fala ao coração, mas também fala ao nosso entendimento, além de sensibilizar nosso afeto, tornando-nos capazes de perceber “verdades” que, sem a música, talvez, nunca teríamos alcançado (cf. 1Co 14.15: “Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente.”).
A música na Evangelização: uma questão missionária
São famosas as campanhas missionárias promovidas pela Igreja ao longo de sua história de crescimento. Quando a Igreja quer proclamar a sua fé e repartir seu testemunho, serve-se da música com notórias vantagens. Entretanto, não se trata de qualquer música, mas de um tipo de hinologia muito particular, cujo caráter kerigmático seja a principal tônica. Os hinos evangelísticos, como já apontado, juntamente com a pregação da Palavra, ajudam no processo de assimilação sintético de uma fé que tem aspectos racionais, emocionais e afetivos. Os hinos alcançam “regiões” do coração humano que os melhores argumentos lógicos jamais atingiriam. A história das missões também é a história do hino evangelístico.
Quando a igreja deve exercer sua função pública e, ao lado de sua mensagem evangelística, praticar a cidadania, o sopro do Espírito Santo faz com que transcenda os limites restritos das edificações religiosas e ganhe as praças públicas. Aqui também, quando tratamos do aspecto profético da Igreja, a música é parte integrante. Há hinos que se constituem em verdadeiros símbolos de resistência, ou de transformação, ou de compromisso solidário. A Igreja canta quando atua ao lado das crianças de rua, quando reivindica melhores condições de vida junto aos operários, quando busca reconquistar a dignidade com os que estão privados da terra ou de teto, quando chora o abandono com os sofredores de rua, enfim, quando a Igreja cumpre sua missão de vestir os nus, visitar os prisioneiros, amparar os forasteiros, alimentar os famintos, etc. (cf. Mt 25.31-46)
A Igreja não somente evangeliza e profetiza, mas também educa e ensina. A ordem do Cristo ressurreto dada aos discípulos é clara: “fazei discípulos de todas as nações […] ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.19-20). A música é uma das formas mais didáticas de ensinar, ou ainda mais, de educar, porque o faz com a razão e com o coração. Quando cantamos, não somente pronunciamos palavras, mas as sentimos. Ainda que não tenha a pretensão consciente, toda música tem um aspecto catequético ou pedagógico. Ensinar um hino é ensinar uma tradição, uma idéia, um conceito, uma doutrina, uma cosmovisão, um estilo de vida. Aqui vale uma advertência quanto ao cuidado com que tais cânticos devem ser escolhidos, particularmente no contexto da Igreja, pois eles podem reforçar idéias bastante contraditórias em relação ao Evangelho de Jesus: algumas canções podem carregar concepções individualistas, ou belicistas, ou ainda discriminatórias e preconceituosas. Saber o que se canta é tão importante quanto saber como se canta.
A título de conclusão: a missão da música
Há elementos que fazem com que certas músicas sejam melhores que outras. Alguns desses elementos são bastante subjetivos, entretanto, outros são mais objetivos e podem ser discutidos aqui.
A afinação: ora, é evidente que uma música afinada é mais bonita que aquela que é entoada desafinadamente. Daqui depreende-se que todo esforço para se buscar a afinação, principalmente no canto congregacional, será justificado. Mas associado ao conceito de afinação, podemos invocar o compromisso do cantante com aquilo que canta. À medida que um hino nos venha de um passado, próximo ou longínquo, ele carrega consigo uma tradição, uma história, uma memória. Sem consciência do passado não há consciência do presente e, muito menos, perspectiva de futuro. Buscarmos a afinação da nossa fé é ainda mais importante do que buscarmos a afinação das nossas vozes, para que o nosso canto soe como um louvor e glorifique ao nosso Pai que está nos céus.
O pulso: toda música é concebida a partir de um contexto cultural e histórico concreto. Assim, o andamento, o ritmo, a cadência de uma canção denunciam o seu contexto vivencial (ou, como gostam de dizer os eruditos, o seu sitz im leben). Rejeitar uma cultura significa excluí-la dos nossos momentos de intercessão e celebração. Assumir o pulso cultural da nossa terra nada mais é do que, a exemplo do Filho de Deus, encarnarmo-nos também nós em nossa terra e entre nossa gente para que, também aí, se manifeste as obras de Deus (ver Jo 9.1-3)
A dinâmica: as músicas mais bonitas não são aquelas que são entoadas de maneira plana, sem coadunação da forma com seu conteúdo. Se a letra de um hino celebra temas alegres, a dinâmica musical deve ser coerente com isso; se a letra expressa pesar e dor, da mesma forma a dinâmica deve corresponder a essa intenção. Por isso a música alterna seus movimentos do pianíssimo ao fortíssimo, para que a coerência entre forma e conteúdo seja perfeita. Note-se aqui, que a tônica é a sincronia entre o compromisso de fé expresso pela letra e o sentimento do executante da melodia. Não se espera que o compromisso destoe do sentimento de quem canta. Buscar essa coerência é tarefa de todos os que, na Igreja e na vida, cantam sua fé.
A consonância: em música, trata-se do intervalo ou acorde agradável, que gera distensão e harmonia. Etimologicamente, o termo refere-se ao ato ou efeito de soar concomitantemente. Em muitas ocasiões se pode notar como uma melodia singela e despretensiosa pode se tornar algo arrebatador e impressionante pelo efeito da harmonização. Trata-se de uma arte que exige muito estudo, esforço e talento. Na Igreja, quando não há concordância, acordo, nem conformidade, não haverá hinologia que seja consonante. Para que um grupo de pessoas entoe harmonias “harmônicas”, é preciso que (1) cada um conheça bem a sua voz; (2) que cada um ouça as demais vozes enquanto entoa; (3) que ninguém cante mais forte, ou mais alto, do que os demais; e (4) que todos observem as instruções do Maestro, cuja função é fazer surgir, da combinação das partes, aquela música única e arrebatadora, expressiva e impressionante.
A fermata: este é um elemento curioso previsto pela teoria musical, porque, enquanto a escrita e a notação indicadas nas partituras servem para delimitar sua execução dentro de padrões previstos por seus autores ou arranjadores, quando o sinal indicativo da fermata surge, o resultado ou efeito do que será executado passa a depender inteiramente do executante. Este, sentindo o momento, poderá retardar o ritmo, alongar uma nota, sustentar um acorde, enfim, expressar a intenção do seu coração, da sua intuição, de acordo com o momento exato em que a música está sendo tocada e/ou cantada. Daqui resulta que toda partitura é diferentemente interpretada não só por diferentes musicistas, instrumentistas, cantores e cantoras, mas que um mesmo musicista ou cantor pode interpretar diferentemente uma mesma música em diferentes ocasiões. Ainda que as partituras obedeçam a regras bem definidas, haverá sempre uma abertura para aspectos imponderáveis e imprevisíveis da dinâmica existencial. Toda música, neste sentido, é um compromisso com a liberdade.
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Muito bom… Achei bem interessante.
Parabéns.
O blog possui recursos, como os videos do YouTube, que o livro “Todo ser que respira…” não tem como incluir.
Pena que ficou faltando algumas questões para discussão e fixação do conteúdo e também um glossário para incluir termos eruditos, como o “Sitz in Leben”.
foi elaborado para estudo grade – planejamento UMESP/EAD Teologia – legal….Silmara