Antes ser inútil que incompetente
Os apóstolos suplicaram: Senhor, aumenta a nossa fé. O Senhor lhes respondeu: Se vocês tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, vocês poderão dizer a esta amoreira: Arranque-se daí e transplante-se no mar; ela obedecerá. (Lucas 17.5-6)
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Agora reflitam comigo: Qual de vocês que tendo um empregado ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Venha logo e sente-se à mesa, veja o que preparei para você? Pelo contrário! Provavelmente o que você lhe diria é: Que bom que você está de volta, agora você pode vestir o avental e ir preparar o jantar para mim; quando o jantar estiver pronto, venha e me sirva enquanto eu como e bebo; depois que eu terminar você poderá comer e beber também.
Por acaso vocês acham que o senhor deveria agradecer ao servo porque este fez o que deveria fazer? Pois não há de ser diferente com vocês: Por essa razão, depois que tiverem feito tudo o que lhes for ordenado, digam: Somos servos inúteis, porque não fizemos mais do que a nossa obrigação. (Lucas 17.7-10)
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Esta é outra perícope de interpretação complexa.
São, na verdade, dois textos desconexos, tornados contíguos pelo redator do Evangelho. Os versos 5 e 6 tratam da fé. Os seguintes, de 7-10, da obediência.
I
Os apóstolos pedem a Jesus: “Aumenta-nos a fé.” A resposta de Jesus me incomoda. Me parece puro nonsense. Basta que a fé tenha o tamanico de um grãozinho de mostarda para se poder fazer coisas extraordinárias, como, por exemplo, transplantar uma árvore para o mar.
Mas quem faria uma coisa dessas? Pra que serve arrancar uma árvore do campo e plantá-la em alto mar?
Pelo visto, também aqui, nos faz falta adivinhar qual teria sido a entonação dada pelo Mestre, como gosta de pensar o Rev. Sérgio Marcus. Quem sabe não haveria nos lábios de Jesus aquele risinho de canto de boca, e aquele olhar espremido de quem se diverte com a reação do seu auditório.
A fé é a força mais poderosa do universo (perdendo talvez somente para o amor). É como a fissão e a fusão nucleares, que conquanto se deem em elementos infinitamente minúsculos, liberam energia extraordinária.
E, é claro, todos querem esse poder. Mas para quê? Muito provavelmente, se tivéssemos acesso a esse poder, o usaríamos para coisas tolas, como arrancar e afogar árvores.
(Tem quem a use pra derrubar pessoas no auditório, fazê-las urrar como leão, dar-lhes dentes dourados, fazê-las tagarelar palavras ininteligíveis, levá-las a êxtases e a terem ataques de histeria…).
Talvez por essa razão Deus seja bastante econômico (e cauteloso) na distribuição desse dom.
II
Quanto à segunda parte da perícope, sobre a obediência, a história é outra. Essa, ninguém quer.
Então, Jesus conta uma estória: Qual de vocês conhece um patrão que sirva o seu empregado, em lugar de ser servido por ele?
A esta altura, bem poderia acontecer de algum discípulo mais maroto levantar a mão e dizer: “Eu conheço! E está bem na minha frente agora, contando uma estória.”
Mas sigamos…
O ordinário das coisas é que o servo sirva. E há dois tipos de empregados: o que cumpre com suas obrigações e o relapso. O que cumpre não deve se arvorar a exigir reconhecimento nem achar que o seu patrão lhe deve alguma coisa.
Aqui está apresentado o tema do cumprimento da lei. Os que vivem por ela, se lograrem cumprí-la cabalmente, não farão mais do que a obrigação. São, portanto, servos inúteis. O que não deixa de ser um “belo” elogio, pois, do contrário, seriam chamados de incompetentes.
Por essa razão, melhor que sejamos considerados inúteis que incompetentes.
Para sermos úteis, é preciso ir além da mera letra, fazer mais que a obrigação. Essa é a diferença de viver pela lei e viver pelo amor. O amor é infinitamente mais exigente do que a lei. No sistema da lei, o empregado come depois do patrão; no sistema do amor não há hierarquia, e bem pode acontecer do patrão servir ao empregado.
Parece que o Reino de Deus precisa mais de pessoas obedientes e úteis, do que de pessoas com extraordinária fé.
A perícope de hoje nos coloca entre a fé e a obediência. Qual a que buscaremos com mais afinco? Mais do que fé para nos movermos no extraordinário e no sobrenatural, que Deus nos dê forças para permanecermos naturalmente fieis nas coisas simples e ordinárias.
Rev. Luiz Carlos Ramos†
Para o Vigésimo Domingo da Peregrinação após Pentecostes, Ano C, 2016