Crepúsculo e alvorecer
de uma Escola Dominical
Lucas 24.13-35
Luiz Carlos Ramos
(Ao genial amigo Carlos Alberto Rodrigues Alves, “podes crer, é incrível”,
a quem atribuo muitas das “sacadas” deste texto,
a propósito do Dia da Escola Dominical.)
No terceiro domingo de setembro, comemoramos o Dia da Escola Dominical. A propósito dessa data, gostaria de arriscar um resgate histórico. Ao que parece, a primeira Escola Dominical, de fato, ocorreu por volta do ano 33 da nossa era (desconsideremos possíveis erros de cálculo que podem jogar esta data 3 ou 4 anos para frente ou para trás) e coincide com a celebração da primeira Páscoa cristã. O registro histórico foi feito pelo evangelista Lucas, e podemos conferir esse relato no capítulo 24 do seu Evangelho.
Aquela primeira aula de Escola Dominical foi “dominical” em um duplo sentido: primeiro, porque aconteceu num domingo (era o primeiro dia da semana, cf. 24.1); e, segundo, porque o professor foi o próprio Senhor (do latim, “dominus”).
A ocasião era a seguinte: Jesus Havia ressuscitado no Domingo de Páscoa. Pouca gente sabia disso. Dentre elas estavam algumas mulheres que constataram o milagre do túmulo vazio e correram dar a notícia aos incrédulos discípulos.
Como se pode notar, a Escola Domincal começou enfrentando grandes problemas, tais como o da evasão escolar e o da ameaça de repetência. Desde então, nos vemos às voltas com esses mesmos problemas.
A Evasão Escolar
Como podemos constatar, a primeira Escola Dominical da Era Cristã aconteceu numa estrada e tinha apenas dois alunos. É verdade que os alunos estavam cabulando a aula naquele dia. Na verdade, parece que tinham a intenção de trancar suas matrículas. Estavam desistindo da escola do Senhor. De fato, “evadiam-se”, quando o Mestre os alcançou. Vejamos:
“Naquele mesmo dia, dois deles [dos discípulos] estavam de caminho para uma aldeia, chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios [12 quilômetros]. E iam conversando a respeito de todas as cousas sucedidas. Aconteceu que, enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e ia com eles” (vs. 13-14).
Não devemos nos esquecer de que a instrução dada por Jesus, antes da crucificação, havia sido bem clara no sentido de que os discípulos deveriam permanecer em Jerusalém. Entretanto, o choque havia sido demais para eles, a ponto de resolveram abandonar a arena. Preferiram voltar para sua aldeia, Emaús.
Estavam tão traumatizados com a truculência da perseguição sofrida por seu Professor, que temeram, justificadamente, por sua própria integridade física. Jesus havia sido condenado à pena de morte depois de ter sido traído por um aluno corrupto e passado por um julgamento injusto. O medo foi grande o bastante para comprometer suas faculdades mentais deixando-os incapazes de reconhecer o próprio Mestre que, de repente, começara a andar ao lado deles. “Os seus olhos, porém, estavam como que impedidos de o reconhecer” (v. 16).
Jesus inicia um diálogo com os entristecidos e preocupados discípulos: “Que é isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais? E eles pararam entristecidos” (v. 17).
As explicações se seguiram e, por elas, podemos notar que, além do medo, a sua opção por trancar a matrícula também se deveu à decepção e ao ceticismo:
“Um, porém, chamado Cléopas, respondeu, dizendo: És o único porventura, que tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias. Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo, e como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais cousas sucederam. É verdade que algumas mulheres, das que conosco estavam, nos surpreenderam, tendo ido de madrugada ao túmulo; e, não achando o corpo de Jesus, voltaram dizendo terem tido uma visão de anjos, os quais afirmam que ele vive. De fato, alguns dos nossos foram ao sepulcro e verificaram a exatidão do que disseram as mulheres; mas a ele não no viram” (vs. 18-24).
A recuperação
Temerosos, decepcionados e incrédulos, os dois discípulos seguiam tristes, estrada fora. A essa altura, Jesus exclamou: “Ó néscios, e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!” (v. 25). Pois esses alunos tinham alguma dificuldade de aprendizado; estavam defasados, e precisavam urgente de um programa de nivelamento. Jesus decide, então, oferecer um programa de recuperação, ali mesmo, na estrada. Não dá para esperar. O caso é urgente. Se os alunos não vão à escola, a escola vai até os alunos.
Jesus ofereceu um currículo de 12 quilômetros. Até chegarem a Emaús, aquele Professor peripatético já havia recapitulado com seus defasados alunos tudo o que estava escrito a seu respeito, “começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas” expondo-lhes as Escrituras (cf. vs. 26-27).
Não há dúvida de que o conteúdo programático da primeira Escola Dominical fora cristológico e essencialmente bíblico. O método dialógico preferiu a proximidade física – o Mestre foi ao encontro do aluno, a aula foi presencial e não a distância. Optou pela proximidade intelectual – o Mestre, pacientemente, retoma com eles os conteúdos básicos necessários à sua formação. E priorizou a proximidade emocional e afetiva – o mestre falava-lhes igualmente ao coração, enquanto lhes instruía a mente, disto os próprios alunos o atestam quando dizem “porventura não nos ardia o coração, quando ele pelo caminho nos falava, quando nos expunha as Escrituras?” (v. 32).
O recreio
Ora! Toda escola que se preze tem que ter recreio. Hoje já não se usa mais esse termo. Prefere-se “intervalo”. Quem fala em “recreio” é gente que é do tempo quando se falava “retrato” em vez de “foto”. Tenho dois amigos, intelectuais respeitáveis, que também preferem, como eu, o termo “recreio”. Um deles é considerado um dos maiores educadores e teólogos contemporâneos e se chama Rubem Alves. O outro, não tão famoso, e um pouco mais jovem. É o filósofo e semiótico José Lima Jr. A razão de sua preferência é simples: a palavra intervalo não diz nada a não ser um período de tempo entre duas coisas importantes. O que significa que no intervalo a gente não faz nada de importante. Agora, a palavra “recreio” é grávida de sentidos. O recreio comporta o lúdico, a alegria e o brinquedo, que são todos parentes da “graça”. Recrear-se também reporta-se a “recriar-se”. Bem, o fato é que houve recreio na primeira Escola Dominical:
“Quando se aproximavam da aldeia para onde iam, fez ele [Jesus] menção de passar adiante. Mas eles o constrangeram dizendo: Fica conosco, porque é tarde e o dia já declina. E entrou para ficar com eles. E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o, e, tendo-o partido, lhes deu” (28-30).
O recreio é uma ocasião para a reconstrução da vida. E é por isso que Jesus aceitou o convite dos discípulos no entardecer daquele dia. Caso Jesus tivesse seguido seu caminho e rejeitado o convite dos discípulos para repartir com eles a merenda, teria sido, provavelmente, o crepúsculo daquela Escola Dominical primitiva.
Entretanto, em lugar de crepúsculo, a Escola Dominical teve ali a sua aurora, “recriou-se”: “então se lhes abriram os olhos, e o reconheceram” (v. 31). É na partilha do pão, ao redor da mesa, que acontece o milagre da revelação. É nessa atmosfera da graça, que todo o esforço acadêmico alcança a sua plenitude. O conhecimento supremo é consumado no gesto singelo e gratuito da partilha do pão.
Conclusão
Mas, justamente nesse momento, acontece algo inesperado: “ele [Jesus] desapareceu da presença deles” (v. 31). O rev. Elias Abraão, saudoso pastor da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba, contava que, certa vez, numa Escola Dominical, estudando este texto com sua comunidade, resolveu perguntar aos seus alunos, sem muita expectativa de obter resposta: “O que terá acontecido com Jesus?”. Mas ele não contava com uma criança que estava na classe e que respondeu categórica: “—Jesus entrou dentro deles!”.
Jesus entrou dentro deles… Poucos teólogos eruditos e titulados teriam condições de fazer uma elaboração teológica tão profunda como a que fez essa criança. Jesus não está mais entre nós para que possa estar dentro de cada um de nós.
Assim, plenamente recreados e recriados, nossos colegas da primeira Escola Dominical decidiram voltar, imediatamente, para Jerusalém a fim de destrancar o curso e rematricular-se na Escola do Senhor.
“E, na mesma hora, levantando-se voltaram para Jerusalém onde acharam reunidos os onze e outros com eles, os quais diziam: O Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão! Então os dois contaram o que lhes acontecera no caminho, e como fora por eles reconhecido no partir do pão” (33-35).
O Mestre está vivo! Por isso a sua escola também está viva.
Setembro de 2002
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