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T e x t o s & T e x t u r a s

Genis, Marias e Ângelas

Surpresas e metamorfoses pascais (Jo 20.1-18)

Luiz Carlos Ramos
(Aos alunos e alunas do 3º. Ano Noturno
do Curso de Teologia — 2006)

“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida. Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram. Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençóis de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençóis, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençóis, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos. E voltaram os discípulos outra vez para casa.

“Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés. Então, eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram. Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher [gr. Gyne], por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, lhe disse, em hebraico: Raboni (que quer dizer Mestre)! Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus. Então, saiu Maria Madalena anunciando [gr. aggellousa] aos discípulos: Vi o Senhor! E contava que ele lhe dissera estas coisas.” (Jo 20.1-18)

Introdução

Como se sabe, o Evangelho de João foi um dos últimos escritos do Novo Testamento a serem redigidos, num período já bem tardio. Talvez por isso há nele vários elementos que o tornam bastante distinto dos demais (dos chamados “sinóticos”): o tom afetivo, o estilo assincrônico, sua linguagem poética e, particularmente, sua abordagem singular de certos episódios, nos quais as crianças e as mulheres ganham destaque especial.

A narrativa joanina da ressurreição de Jesus é bastante peculiar nesse aspecto. Há, notoriamente, um conflito entre diferentes tradições que evidenciam tensões entre os seguidores de Pedro (que é o primeiro a entrar no sepulcro), João (como o jovenzinho que foi o primeiro a crer), e Maria (como a que fica do lado de fora chorando). Nessa costura precária, são as crianças as primeiras a crer (cf. v. 8), e as mulheres, as primeiras a testemunhar o milagre da ressurreição (cf. vv. 17-18), enquanto o primeiro “papa” volta pra seu barco e sua pescaria.

Nesta reflexão, entretanto, a partir especificamente dos versículos 11-18, gostaria de chamar a atenção para algumas surpresas e metamorfoses pascais vivenciadas por uma mulher em particular, colocada em evidência pela narrativa, que pode ser paradigmática de todas as mulheres e de toda a humanidade: trata-se de Maria Madalena.

Geni…

A tradição se encarregou de difundir a suposta má fama dessa mulher chamada Maria de Magdala: pecadora, endemoninhada (por sete espíritos), prostituta (ainda que as bases exegéticas dessa tradição sejam bastante frágeis). Se tomarmos como referência a narrativa lucana da unção dos pés de Jesus por uma certa pecadora, freqüentemente confundida com Maria Madalena, podemos descobrir como os fariseus  e as pessoas em geral costumavam se referir a mulheres como ela: “mulher-pecadora”. Neste caso, “mulher” e “pecadora” são praticamente sinônimos.

Em grego, mulher é gyne, de onde derivam as palavras portuguesas “gene”, “genética”, “gênero”, “gênesis” e o nome próprio “Geni”. Chico Buarque tem uma composição ontológica na qual narra a triste saga de uma personagem igualmente difamada, em quem todos adoravam atirar pedras e excrementos.

Mas voltemos ao sepulcro. Lá está a nossa Maria, chorando, meditando inconformada sobre aquele túmulo violado, aqueles lençóis jogados no chão, misteriosos, aquele sudário enigmático enrolado num canto, e dois homens suspeitos velando à cabeceira e aos pés de uma lápide vazia.

É nessa hora que ela escuta alguém chamando-a: “— Geni! [Gyne]” Ela se volta, e mal consegue distinguir um vulto, no lusco-fusco da aurora, os olhos ainda embaçados pelas lágrimas e as pupilas dilatadas pelas trevas do sepulcro. Seria o jardineiro? Estaria ele com o corpo do mestre? Então, os ouvidos revelam o que os olhos não podem mostrar: a voz torna a chamá-la, mas desta vez pelo nome…

… Maria

Não se sabe ao certo a origem do nome “Maria”. Uma das teorias supõe ser esse nome de origem egípcia e uma derivação de “Mirian”. Dos vários sentidos propostos, um me chamou a atenção: “obstinada”.

Parece que esse significado se encaixa perfeitamente à nossa personagem. É a primeira a ir ao sepulcro, sendo ainda escuro. Anuncia o roubo do corpo do Mestre aos companheiros, mas volta para junto do túmulo. Enquanto os outros discípulos “voltam para os seus”, para suas casas, para seus afazeres, Maria continua velando à entrada do túmulo.

A recompensa da sua obstinação é o privilégio de ter sido a primeira a se encontrar com o Cristo ressurreto.

Quando Geni ouve aquela voz chamando: “— Maria!”, acontece uma metamorfose maravilhosa: ela reconhece o Mestre Vivo, e exclama: “— Rabino, meu Mestre!” E, literalmente, o abraça.

Então, o Rabino lhe diz que ela precisa deixá-lo ir: “— Não me segures, porque ainda não subi para o meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos, e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.”

É nessa hora que a Geni, que havia se reconhecido como Maria na voz do Mestre, converte-se, por essa mesma palavra, em…


… Ângela

Diz o texto que “então saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o Senhor!” O termo grego relativo a “anúncio”, usado aqui na forma de um verbo no particípio, deriva de aggelos, de onde temos a palavra “anjo” e o nome próprio “Ângela”, ou “Angélica”.

A mulher difamada, em quem se costumava atirar impropérios, no encontro com o Mestre ressurreto redescobre sua identidade e até amplia seu horizonte existencial. Como na música de Chico Buarque, é a difamada Geni, que se torna a portadora da salvação da cidade. Maria torna-se apóstola. Sim, a primeira. Testemunha angélica da vitória da vida sobre a morte. Anunciadora da boa nova: “A morte morreu! A morte morreu!”

Conclusão

Esta narrativa de João é uma espécie de Gênesis às avessas. Lá, as pessoas viviam, qual borboletas, num belo jardim, e como anjos, desfrutavam da companhia divina na viração do dia. Mas, um dia, num encontro diabólico com a serpente, essas pessoas mergulharam num casulo mortal, que as tornou vulneráveis e sujeitas, como pobres lagartas, às dores e pesares de uma vida de pecado, sem a beleza nem a leveza das borboletas, porque perderam suas asas da liberdade.

Por sua vez, o Evangelho de João nos fala de uma nova gênese, ocorrida, desta vez, no tétrico e fúnebre jardim onde Jesus havia sido sepultado. Jesus faz o caminho inverso, rompendo o casulo da morte e ressurgindo com o nascer do sol.

E ele  foi só o primeiro. Porque o nosso Mestre vive, e vive eternamente, nós podemos ter esperança, e também podemos experimentar, como a Geni da nossa história, a metamorfose de Maria capaz de nos transformar a todos em “anjos” e “ângelas” anunciadores da beleza e da leveza da ressurreição.

Sim, hoje, a morte morreu e Jesus está vivo!

E porque Ele vive, eu também viverei, nós também viveremos!

Aleluia!

7 Comentários

  1. Nossa, muito massa esse texto, professor. O trocadilho em grego – olha que requinte – com o nome Geni, da célebre música, foi uma ótima sacada. E o melhor é que tem todo um sentido específico dentro do texto.
    Rsrs… este é mais um sermão que não poderá ser meu… Daqueles que a gente diz: Puxa, pq eu nao tive essa idéia antes?

    Abraços professor! Paz e bem

  2. Nossa, muito massa esse texto, professor. O trocadilho em grego – olha que requinte – com o nome Geni, da célebre música, foi uma ótima sacada. E o melhor é que tem todo um sentido específico dentro do texto.
    Rsrs… este é mais um sermão que não poderá ser meu… Daqueles que a gente diz: Puxa, pq eu nao tive essa idéia antes?

    Abraços professor! Paz e bem

    • Grande abraço a vc, também, meu amigo. Obrigado pelo carinho.
      Luiz

  3. Que mensagem linda!!!!
    É nessa certeza que CRISTO vive é que posso crer no amanhã.
    Uma FELIZ PÁSCOA para vc e sua família.
    Bjsssssss

  4. Que mensagem linda!!!!
    É nessa certeza que CRISTO vive é que posso crer no amanhã.
    Uma FELIZ PÁSCOA para vc e sua família.
    Bjsssssss

  5. Amei Luiz!
    Amei!!!
    Vocé é maravilhoso!
    Beijo,
    Di

  6. Amei Luiz!
    Amei!!!
    Vocé é maravilhoso!
    Beijo,
    Di

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