Memória, presença e esperança
Apresento a vocês uma teoria geral da homilética ou, ainda os aspectos teóricos que fundamentam uma teologia da proclamação com vistas à preparação de sermões/prédicas.
Os fundamentos ou princípios homiléticos têm como referencial as teologias: bíblica, sistemático-histórica e pastoral. As principais ferramentas interdisciplinares do procedimento homilético são, portanto, a exegese, a hermenêutica e as ciências da comunicação das quais a retórica é a matriz. Conseqüentemente, o produto homilético, que é a prédica, se configura como uma peça oratória que, a partir dos textos bíblicos, explica o passado, interpreta o presente, e aplica sua mensagem à comunidade de fé na forma de desafios em relação ao futuro.
Tradicionalmente, o discurso homilético, motivado pela premência do cotidiano, se dá a partir de uma perícope tomada dos escritos sagrados, e assumida como texto básico da prédica que, convertido em matriz querigmática, é apresentado como desafio discursivo à comunidade de fé. E esta é a razão por que a exegese, a hermenêutica, e a retórica, entre outras ciências sociais e humanas, se apresentam como ferramentas necessárias à homilética.
Teologia bíblica e exegese
Deflagrado pelas contingências do cotidiano — que na maioria dos casos parece ser aquilo que se passa quando parece que nada se passa , mas que se constitui na situação vivencial determinante, tanto da comunidade como do pregador ou pregadora —, a tarefa homilética dá seus primeiros passos partindo do processo exegético, que se inscreve no contexto das disciplinas ligadas à teologia bíblica.
Sabendo do risco que o exegeta corre de perder a objetividade, ele procura se cercar de instrumentos que garantam, tanto quanto possível, o rigor científico de sua tarefa.
E essa se constitui numa busca tríplice: primeiramente, aclarar as situações descritas nos textos por meio da redescoberta do passado para que a narrativa em questão se torne compreensível para aqueles que vivem em circunstâncias e cultura tão diferentes; em segundo lugar, em tentar “ouvir” a “intenção que o texto teve em sua origem”; e, finalmente, à luz dessa investigação, verificar “em que sentido [certas] opções éticas e doutrinais podem ser respaldadas” ou rejeitadas.
Para cumprir essa tríplice tarefa, a exegese atual segue os passos (onze, ao todo) propostos pelo método histórico-crítico:
Por meio da crítica textual procura, primeiro, constatar as diferenças textuais entre os vários manuscritos, bem como avaliar qual das leituras tem maior probabilidade de representar o texto original do autor.
Feito isso, procede-se a tradução da forma mais literal possível, com vistas a avaliar as traduções existentes.
O terceiro passo é o da análise literária que procura delimitar e estruturar o texto.
Então, passa-se à análise da redação, que pretende identificar que interesses e intenções motivaram os autores a redigir seus textos.
O quinto passo é a análise das formas, que pelas características formais de um texto determina o seu gênero literário, e também define o “lugar vivencial” e a intenção do texto.
O sexto passo é o da análise da transmissão do texto que procura identificar os eventuais estágios pelos quais um texto passou durante o processo de transmissão oral, até sua fixação final.
O sétimo estágio é o da análise da historicidade que avalia se o conteúdo de um texto tem base histórica sólida.
Outro passo é o da análise da história das tradições do texto pelo qual se procura identificar eventuais imagens, conceitos, idéias, símbolos, motivos ou representações tradicionais existentes no texto e aclarar sua origem e transformações.
Os três últimos passos, embora previstos no método histórico-crítico adotado pela exegese contemporânea, se enquadram mais no processo hermenêutico-teológico (discutidos no item a seguir) — são eles:
A análise de conteúdo, o nono passo, é uma tentativa de interpretação do conteúdo do texto; a análise teológica, o décimo passo, que tenta determinar a teologia do texto.
E a atualização, o último passo, que procura mostrar a relevância da mensagem do texto para a atualidade.
Em suma, a exegese, teria como alvo o estudo dos textos bíblicos em si.
Mediante um distanciamento consciente, o homileta-exegeta ocupa-se do contexto literário de uma determinada perícope, ou mesmo de um corpo literário mais amplo, procurando identificar sua tradição e outros fatores intra e extratextuais que possam ajudar na compreensão do sentido que o texto teria para seus autores e primeiros leitores.
Teologia sistemático-histórica e hermética
Não caberá aqui a exposição dos pressupostos e métodos da teologia sistemática, entretanto, sim, será pertinente tratar das concepções e procedimentos hermenêuticos que se inscrevem na fronteira da exegese, da teologia e da homilética.
Para autores como Emerich Coreth e Knierim, a hermenêutica “pertence ao domínio do pensamento teológico” e sua tarefa envolve “o encontro entre o valor dos textos […] com o valor das situações de hoje”.
Isso se dá de maneira tal que a hermenêutica confronta o mundo da Bíblia “com o nosso mundo e suas múltiplas e igualmente diversas situações” .
Ao se distinguir entre hermenêutica como método e como interpretação de textos, se nota a proximidade desta última com a pregação — por mediar “o encontro entre os enfoques dos textos bíblicos e os de situações comparáveis de nossa realidade, hoje”.
A hermenêutica com a qual a homilética dialoga pode ser definida como a ciência ou arte da interpretação das Sagradas Escrituras (ars interpretandi).
Em sentido amplo, hermenêutica é a ciência da interpretação da linguagem de um autor.
Assume que há modos diversos de pensar e ambigüidades de expressão que distanciam os autores de seus leitores.
Assim, a hermenêutica pretende remover, ou pelo menos reduzir, as supostas diferenças entre ambos.
A hermenêutica começa onde termina a crítica textual, cujo objetivo é asseverar as palavras exatas dos textos originais.
A hermenêutica, por sua vez, pretende estabelecer os princípios, métodos e regras necessários para a compreensão e desdobramento de sentido das palavras do autor.
Por um lado, a exegese aplica esses princípios e leis buscando “tirar” (ex), em termos formais, o significado das palavras do autor.
Por outro lado, a ciência da interpretação depende essencialmente da exegese para manutenção e ilustração de seus princípios e regras.
Assim, a hermenêutica é ciência e arte a um só tempo: como ciência investiga leis e enuncia princípios do pensamento e da linguagem, bem como classifica seus efeitos e resultados; como arte, ensina que aplicação tem tais princípios na elucidação dos mais difíceis escritos, estabelecendo procedimentos exegéticos válidos.
Pode-se distinguir diferentes métodos de interpretação comumente praticados, dentre eles: a interpretação alegórica, a mística, a pietista, a racionalista, a moralista, a naturalista, a mítica, a apologética, a gramático-histórica.
“De fato”, afirma Croatto, “toda leitura é a produção de um discurso, e portanto de um sentido, a partir de um texto” .
Assim, pode-se afirmar que a hermenêutica não é a ciência da interpretação, mas a ciência da reinterpretação.
E ao se aperceber disso, leva em conta também a condição vital inegável do intérprete, cujo ato hermenêutico faz crescer o sentido do texto pela contribuição da sua própria existência como “ser no mundo”.
O texto é, portanto, o elemento médio entre dois pólos históricos da abordagem hermenêutica: o elo entre o passado e o presente.
A exposição feita até aqui pretendeu explicitar como o procedimento exegético-hermenêutico é determinante para o acontecimento homilético (querigmático).
Pois, “o acontecimento se faz ‘palavra’”, o cotidiano se faz discurso, e este “desemboca em um ‘texto’, o texto por sua vez reclama a palavra nova que o relê” .
Nesse processo sucessivo, o cotidiano inventa a palavra, “a palavra engendra o texto, e o texto a palavra” e, outra vez, essa palavra nova reinventa o cotidiano.
Aqui já se pode vislumbrar nitidamente a correlação entre a exegese, a hermenêutica e a homilética, pois, como Croato nos aponta, “essa relação se dá também entre a Escritura como totalidade e a palavra que proclama o querigma”, pois a “Escritura foi antes proclamação, e o é depois […]. Em suma, a palavra se faz Escritura, [e] a Escritura se faz palavra nova. Não se pode terminar nunca esse movimento”.
Luiz Carlos Ramos