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T e x t o s & T e x t u r a s

A conceituação da homilética em perspectiva histórica

 Luiz Carlos Ramos

“Aconteceu que, enquanto conversavam [homileo] e discutiam [suzeteo],
o próprio Jesus se aproximou [eggizo] e ia com eles [sumporeuomai].”
(Lc 24.15)

Há três disciplinas teológicas que estão direta e explicitamente relacionadas ao culto público: a Liturgia, a Hinologia, e a Homilética. A presente abordagem trata, especificamente, desta última: a Homilética, como um capítulo fundamental da Teologia Pastoral (em estreita dependência à Teologia Bíblica e à Sistemático-Histórica).

No texto de Lucas 24.15 — cujo contexto é o do encontro de Jesus ressuscitado com dois de seus discípulos no caminho de Jerusalém a Emaús —, o verbo grego homileo é empregado para descrever o diálogo em tom familiar e afetivo dos dois discípulos que trocavam idéia entre si a respeito dos últimos acontecimentos relativos à condenação e à morte de Jesus. Homileo — da mesma raiz das palavras Homilia e Homilética — significa, em princípio, “estar em companhia de”, e, por implicação, conversar, comungar. Em português, o verbo conversar é resultado da composição com + versar, o que pressupõe a interação mediada pela palavra entre duas ou mais pessoas. 

O mesmo versículo diz ainda que os discípulos “discutiam”, que em grego (suzeteo) significa “investigar junto com”, isto é, controverter, disputar, inquirir, questionar (com), arrazoar (junto). Os acontecimentos relacionados à fé e à vida e morte de Jesus eram objeto não somente de diálogo informativo, mas de exercício especulativo. Os acontecimentos não devem ser objetos de mera informação e assimilação, mas devem ser problematizados com vistas à sua superação.

Outro verbo importante nesse verso é o que descreve a atitude de Jesus: enquanto os discípulos faziam suas homilias e levantavam seus questionamentos críticos, “o próprio Jesus se aproximou”. O verbo eggizo empregado aqui enfatiza o ato de “chegar perto”. estar “ao alcance da mão”.

Por fim, o mesmo verso afirma que Jesus “ia com eles”. O verbo sumporeuomai, que pode ser traduzido por “caminhar junto”, significa também “assumir uma estratégia ou curso de ação com vistas a resolver uma situação difícil”. A narrativa parece sugerir que, quando a Igreja dialoga e reflete a respeito do Evangelho, o próprio Cristo se aproxima para fazer parte desse encontro dialógico: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20).

É isso que pretendemos promover nesta e nas nossas próximas teleaulas: um diálogo afetivo a respeito da comunicação do Evangelho (Homilética); a problematização dialógica a respeito das dificuldades no processo interpretativo (exegético e hermenêutico); o que pressupõe uma aproximação da nossa vida com o seu autor, o Verbo encarnado, num caminhar comum em busca da mesma experiência de ressurreição (Teologia da Proclamação).

1 Pregação, Homilia, Sermão, Prédica, Parênese

Qual a diferença entre “pregação” e “sermão”?

Devemos ter claro que a “pregação” (do lat. predicatio e do gr. kerugma), em sentido lato é muito mais ampla que aquela peça oratória pronunciada no contexto celebrativo do culto. A “pregação” é tudo o que a igreja vive na prática como testemunha do Evangelho. A proclamação do Evangelho é a grande tarefa missionária da Igreja.[1] Portanto, o “sermão” é apenas uma das diferentes formas pelas quais a Igreja prega o Evangelho, ao lado do testemunho pessoal, da solidariedade comunitária, dos atos de piedade e das obras de misericórdia. A pregação acontece por meio de gestos e palavras, de literatura e cânticos, da arte e dos símbolos, etc.

Mais especificamente falando, a homilética é entendida como a disciplina que se ocupa da ciência e da arte da pregação de sermões religiosos — ciência, porque estuda criteriosamente os processos do discurso religioso e arte porque aplica-se ao estudo das suas técnicas. A palavra tem origem no termo grego homiletikos que, por sua vez deriva de homilos que significa “multidão”, “assembléia do povo”.[2] Pelo que se sabe, os primeiros cristãos empregavam o termo para designar a “assembléia do culto”. O verbo grego, homileo, que se traduz por “conversar”, passou a ser empregado para indicar os discursos em tom familiar que eram feitos nessas reuniões ou assembléias. Do verbo homileo deriva-se o substantivo homilia, que passou a designar as exposições instrutivas (exortativas[3]) que se fazia das escrituras no contexto litúrgico das primeiras comunidades cristãs. A homilia se constituiria, assim, em uma das formas da pregação cristã.

Embora o produto homilético receba, com freqüência, diferentes designações, tais como pregação, prédica, parênese, homilia e sermão, em sentido restrito, tais expressões referem-se àquela peça oratória, discursiva que se dá no contexto celebrativo da comunidade de fé. O caráter específico da homilética se dá em virtude de sua vinculação litúrgica.[4] É esse o diferencial que distingue o “sermão” de outros discursos: o contexto litúrgico.

Pode-se estabelecer o seguinte roteiro histórico da práxis homilética: os antecedentes da homilética cristã no período do Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica)[5]; a homilética no período do cristianismo primitivo; durante os quatro primeiros séculos da era cristã; durante a Idade Média; no período da Reforma Protestante; a partir da Reforma Protestante; durante o período dos movimentos evangelísticos e missionários; e a pregação recente e contemporânea.

2 A homilética antes da homilética

A homilética cristã é historicamente herdeira da tríplice hierarquia judaica: rei—sacerdote—profeta.

Pode-se dizer dos Sacerdotes que praticavam uma homilética da celebração do cotidiano. O sermão sacerdotal atua, em geral, como recapitulação da memória fundante de Israel e convocação à prática dos preceitos dados por Deus e registrados nos escritos sagrados — Torá (Lei), dos Nebiim (Profetas) e dos Ketubim (Escritos).

Quanto aos Reis-pregadores, tratava-se de uma homilética da sabedoria familiar. Na Bíblia Hebraica, constata-se a responsabilidade homilética de chefes de família, de clãs e de reis. É interessante notar que o mapeamento da sabedoria semita, principalmente de Israel, mostra o trabalho dos sábios que coletam as memórias (e demais produções sapienciais, tais como ditos, sentenças e provérbios) das bases populares, submete-as à interpretação das escolas sapienciais, organizando por fim coletâneas e antologias. A obra se torna o espelho da consciência do povo. O papel de pregador não se restringia aos reis. Também era responsabilidade dos “anciãos de Israel”, isto é, dos chefes de família, explicar para os seus familiares e agregados o sentido das festas e das cerimônias religiosas que, como povo, celebravam anualmente. Por essa prática homilética as tradições e a cultura religiosa eram transmitidas de geração a geração.

Quanto aos Profetas, sua homilética é a da contestação e da esperança. A homilética profética judaica se manifestava de duas maneiras: no anúncio das promessas divinas e nas denúncias de eventuais desvirtuamentos em relação à vontade divina. Deve-se acrescentar, a respeito dos profetas, que sua pregação não se restringia ao discurso oral. Muito de sua pregação se efetivava por meio de atos simbólicos, do gestual, do vestuário (ou ausência dele) e do seu próprio estilo de vida. Os profetas se comunicavam verbalmente (alguns chegavam a gritar, cf. Is 40.6), alguns poucos escreviam suas mensagens, mas, “falado ou escrito, o seu discurso, feito de palavras e de frases, se desdobrava em outra linguagem, a dos sinais, dos gestos”. Portanto “a palavra dos profetas era também ‘gestual’; as suas proclamações oratórias eram pontilhadas de atos significativos”:[6] rasgando mantos (1Rs 11.30-32), brandindo chifres de ferro (1Rs 20.35-43), casando com prostitutas (Oséias), dando nomes-mensagens aos filhos (Is 7.3; 8.3; 7.14; 8.3s), andando nus e descalços (Is 20), lavando cintos no Eufrates (Jr 13.1-11), quebrando jarros (Is 19), carregando cangas no pescoço (Jr 27), trancando-se em casa, mudos e atados (Ez 3.24-64), cortando fios da barba e do cabelo (Ez 5.1-3), comendo alimento de miséria (Ez 12.17-20), para citarmos uns poucos exemplos.

Da profecia bíblica, a práxis homilética herdou a solidariedade para com o povo oprimido e o engajamento no serviço de uma Palavra que transcende o orador o discurso verbal, chegando mesmo a expressar-se espetacularmente por meio de atos simbólicos significativos, com vistas à transformação da realidade.

3 A homilética cristã

A análise da práxis homilética de Jesus, dos apóstolos e dos primeiros líderes cristãos, ajudará na compreensão do conceito de pregação cristã.

Jesus: uma homilética da (con)vivência: Conforme relato das comunidades dos evangelistas Lucas, e Marcos, principalmente, o próprio Jesus teria afirmado que sua missão consistia numa tarefa homilética (ver Lc 4.18-19 e Mc 1.38-39). Em síntese, Jesus era um pregador itinerante.

Pelos registros evangélicos, nota-se que Jesus pregava com simplicidade sobre uma grande variedade de temas e que conquistava a simpatia dos seus interlocutores. Nas páginas dos evangelhos, Jesus é sempre encontrado pregando: quer sejam pregações formais nas sinagogas; pregações ocasionais nas praias, pelos caminhos, sobre as montanhas e vales; ou pregações individualizadas dirigidas a pessoas com quem se encontrava nas casas, nas praças, alhures e algures.[7]

Note-se o uso que Jesus fazia da linguagem imagética, do raciocínio analógico, das figuras de linguagem, particularmente as metáforas, da cenografia, das possibilidades acústicas, da linguagem corporal, etc. A maneira como seus discursos surpreendem, despertam o interesse, apresentam o contraponto ideológico e rendem o auditório são dignos de nota.[8]

A interpretação mais notável que os evangelhos fazem do estilo homilético de Jesus é o registro do Sermão da Montanha (Mt 5). A homilética de Jesus não seria tão notável, entretanto, se estivesse restrita somente ao nível do discurso. A força persuasiva da sua pregação é reforçada por seu modo de vida. A novidade da homilética de Jesus está, portanto, na sua práxis, isto é, na maneira como ele combina palavra e ação: é, portanto, uma homilética da vivência e da convivência.

Pedro e Paulo: uma homilética da emoção e da persistência: o sermão de Pedro, no dia de Pentecostes (At 2.14-36), se caracteriza pela ausência do elemento subjetivo; pelo mérito conferido à obra do Espírito Santo; pelo apelo à história e à profecia, como base da fé; pela citação abundante das Escrituras; pela proclamação direta do evangelho (culpabilidade humana e salvação mediante a morte e ressurreição, ascensão e glorificação de Jesus).[9] Pedro evoca os escritos proféticos para fundamentar sua prédica. A seguir, interpreta a palavra profética a partir da vida e dos ensinamentos de Jesus. Mais do que re-interpretar o texto sagrado, o próprio Jesus é apresentado como o Messias a respeito de quem os textos sagrados se referem.

Os “sermões” de Paulo, brevemente relatados nas páginas do Novo Testamento são suficientes para deixar transparecer o seu gênio homilético. Não obstante Paulo se considera um mau pregador (ironia?) quando comparado a um certo Apolo, famoso por sua eloqüência (cf. 1Co 2 e 3). As características da pregação de Paulo podem ser percebidas a partir do sermão proferido no Areópago, na cidade de Atenas, conforme relatado por Lucas (At 17.16-31). Note-se, nos versículos 22 e 23, a sintonia do pregador com a audiência e sua capacidade para apresentar novas idéias a diferentes auditórios. Também a criatividade para tratar o assunto de tal maneira que desperte a curiosidade dos ouvintes. Paulo demonstra familiaridade com as Escrituras e com a literatura em geral, chegando a citar poetas gregos. Nota-se, ainda, o cuidadoso preparo da pregação com abundantes recursos lógicos e psicológicos.

A pregação apostólica demonstrou ser emocionalmente contundente a ponto de enfrentar oposições de uma religião estabelecida, por um lado, e, por outro, corajosa e persistente o bastante para disseminar e propagar suas convicções por grande parte do mundo conhecido nos primórdios da era cristã.

A pregação nos primeiros séculos: uma homilética familiar e eloqüente: Ao longo de três séculos, a pregação teria apresentado distinto progresso. O caráter menos técnico de pregações como as de Pedro, deu lugar a uma forma mais sistematizada de discurso; o ensino, que era principalmente expositivo, tornou-se lógico e claramente demarcado; a homilia, que tinha caráter informal, foi substituída pelo sermão, muito mais formal; os argumentos até então simples e suficientes, baseados unicamente nas Escrituras, agora carecem da complementação da opinião humana por causa do aumento da erudição do público; a essa influência intelectual acrescente-se o efeito da cultura retórica.[10] Nesse período, a prédica se caracterizou definitivamente como parte integrante da expressão litúrgica das comunidades cristãs.

Cultura geral, conhecimento dos textos bíblicos e de autores clássicos, conhecimento dos princípios da gramática e da retórica, bem como da exegese bíblica (com os limites da época, naturalmente, pois a noção de exegese era diferente do que a modernidade consagrou por meio do método histórico-crítico), traduzidas num discurso acessível e apaixonado, proferido no contexto celebrativo da comunidade cristã, fizeram de pregadores como Jerônimo, Ambrósio e Agostinho, referência homilética para as futuras gerações de pregadores cristãos.

4 A homilética medieval

A pregação na Idade Média: uma homilética mendicante: O período de nove séculos que formam a Idade Média, que vai desde a queda do Império Romano (séc. V), até o nascimento do mundo moderno (séc. XV), é marcado pela propagação do cristianismo por toda a Europa. Nele se dá a transição do fim da Patrística e o começo da Escolástica.[11]

A Idade Média foi marcada por um tipo de racionalidade muito peculiar, por um lado, e por uma mística inusitada, por outro.A homilia — como discurso familiar, simples e íntimo — foi substituído pelo discurso tópico (temático), bem ao gosto dos melhores pregadores gregos, e nos moldes da filosofia escolástica. Espacialmente falando, na arquitetura eclesiástica oficial, procede-se a elevação suntuosa e chamativa do púlpito “por sobre a cabeça da assistência”, o que demonstra, pelo menos no âmbito eclesiástico oficial “o tom altamente retórico da pregação durante a Idade Média”.[12]

Em contrapartida à Escolástica, dissemina-se uma mística que contagia o povo e alarma a hierarquia, que ficou conhecida como movimento das ordens mendicantes. Dentre seus maiores expoentes está Francisco de Assis (1182-1226)[13] Francisco de Assis preferia pregar a céu aberto para as multidões que se ajuntavam ao seu redor, em lugar de fazê-lo nas igrejas, mesmo aquelas que se ofereciam para acolhê-lo. Sua pregação se distanciava do intelectualismo e do dogmatismo rígidos do seu tempo e procurava apresentar Cristo “de todo o seu coração”, convidando seus ouvintes para seguirem a Cristo como ele mesmo o fazia. Essa postura não o protegia das superstições que grassavam nas camadas populares, a despeito da ortodoxia do alto clero.[14]

Tais eram os pregadores místicos: faziam votos de pobreza e de castidade, entusiásticos e dedicavam-se à pregação em linguagem vernácula (enquanto o alto clero preferia o latim), e freqüentemente buscavam inspiração na natureza e apelavam para o exemplo de Jesus, enfatizando sua humildade e pobreza. “Se os Escolásticos eram luz sem coração, os Místicos eram coração sem luz”.[15]

5 A homilética reformada

A pregação na Reforma: uma homilética professoral: Para Whilhelm Pauck, “nada é mais característico do Protestantismo do que a importância que ele dá à pregação”[16]. Muito embora a prédica sempre tenha sido importante na história do cristianismo, ela nunca teve papel tão central como no período da Reforma Protestante do século XVI.

Para os reformadores, particularmente Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), a Igreja se encontra onde a Palavra de Deus é corretamente pregada e ouvida e os sacramentos são corretamente administrados e recebidos.[17]

Assim, surge uma nova concepção do termo “ministro”, este é, agora, o minister verbi divini (servo da Palavra de Deus). Os reformadores se referiam costumeiramente ao “ministro” ordenado como “pastor”, mas mais freqüentemente como “pregador” (Prediger ou Praedikant). O povo em geral, se referia aos ministros como “pregadores”.[18]

No tempo de Lutero, era prática comum pregar-se um livro da Bíblia todo, domingo após domingo. Segundas e terças-feiras pregava-se sobre uma parte do catecismo, do decálogo, do credo, da oração do senhor ou sobre os sacramentos. O sermão de quarta-feira centrava-se no evangelho de Mateus e nas quintas e sextas, expunham-se as epístolas. O evangelho de João oferecia a base para o sermão dos ofícios realizados aos sábados.[19]

Os reformadores se viram às voltas com a ignorância do povo em geral e do clero em partirular. Para enfrentar esse desafio, foram tomadas providências para que o púlpito se convertesse em um meio de instrução. A ênfase da homilética reformada não era, portanto, convercionista, nem pretendia provocar emoções ou sentimentos, mas inspirava discursos cada vez mais catequéticos e doutrinários. O tom da tarefa do ministro clérigo torna-se predominantemente didático, mesmo a administração dos sacramentos é acompanhada por algum tipo de instrução.

Se a arquitetura marcou a identidade homilética medieval, com seus suntuosos e elevados púlpitos, a homilética reformada ficou caracterizada pelo figurino, com a substituição da indumentária sacerdotal pelos trajes acadêmicos.[20] Os paramentos sacerdotais, típicos da igreja romana, deram lugar à toga do acadêmico secular (chamada de schaube).[21]

Uma possível síntese da doutrina da prédica reformada pode assim ser expressa, no entendimento de Michael Rose: (1) a primazia da palavra oral em relação aos outros meios de graça; (2) a Palavra de Deus deve consolar e libertar a consciência moral do ser humano por meio da prédica evangélica; (3) somente a Cristo se deve pregar (solus Christus praedicandus); (4) a pregação da Palavra se destina ao indivíduo; (5) integração ou nexo entre pregação, culto e espaço público; e (6) troca do meio de pregação mais acentuadamente visual para uma comunicação mais acentuadamente auditiva, lingüística.[22]

6 A homlética no pós-Reforma

A pregação no pós Reforma: uma homilética apologética e iluminada: Após a ruptura eclesiástica resultante da excomunhão de Martinho Lutero do quadro sacerdotal da igreja romana, a igreja cristã ocidental enfrentou os séculos subseqüentes dividida e dividindo-se.

A homilética nos séculos do pós-Reforma (XVII e XVIII) é marcada pelo Movimento Tridentino (Contra-Reforma), o Pietismo e o Iluminismo. Esse também foi um período que recebeu muita influência das reflexões místicas de Santa Teresa D’Ávila (1515-1582) e de São João da Cruz (1542-1591).[23]

A retomada da ortodoxia romana, pelo movimento da Contra-Reforma, promoveu, em contrapartida, a reafirmação da ortodoxia reformada. Nesse período a prédica ocupava-se da reafirmação e da instrução da reta doutrina, em contraposição a “outros conteúdos doutrinais, principalmente os católicos”, o que significa dizer que “a edificação ou a nutrição da fé não tinham um papel tão decisivo”.[24] Trata-se, portanto de uma pregação apologética marcada por disputas teológicas e controvérsias doutrinárias, tanto por parte da igreja romana como das protestantes — uma enfática guerra de ortodoxias.

Outro movimento que influenciou a práxis homilética a partir do século XVIII foi o avivamento religioso inglês. Na primeira metade do século XVIII, teve início um movimento liderado George Whitefield (1714-1770) e por John Wesley (1703-1791) e que pretendia “reformar a nação e, em particular, a igreja; para espalhar a santidade bíblica sobre toda a terra”[25].

Desprestigiada pela igreja oficial, a prática homilética desse movimento se notabilizou pela realocação dos púlpitos para as praças e outros lugares públicos fora das fronteiras eclesiásticas. Também o auditório seleto dos templos foi substituído pela massa excluída pela igreja oficial. A pregação passou a ser dirigida aos pobres, aos trabalhadores das minas, aos escravos, aos prisioneiros, aos desempregados, e à multidão que vagava pelas ruas em busca de esperança e do pão cotidiano.[26]

7 A homilética moderna

A pregação no tempo das missões: uma homilética conversionista e estrangeira: Os séculos XIX e XX ficaram marcados, pelo menos nas igrejas protestantes, pela obra missionária estrangeira mundial. Tanto o movimento missionário como o filantrópico do princípio do século XIX foram resultado do avivamento evangélico deflagrado pela geração de John Wesley. 

Não obstante os prejuízos e preconceitos culturais, políticos e econômicos, decorrentes das missões estrangeiras, ouve interessantes atuações de missionários que, de alguma forma, se converteram aos que pretendia converter, e passaram a lutar ao seu lado para preservar-lhes a dignidade, como for a o caso de David Livingstone (1813-1873)[27].

De todas as formas, o evangelho chegava às regiões mais distantes do globo, pregado por missionários que, além da Bíblia, traziam consigo toda uma bagagem cultural e ideológica que se confundia com o próprio Evangelho. O resultado foi uma ação missionária imperialista, cuja ênfase conversionista impunha a ideologia dos pregadores. Muitos faziam isso convictos de que sua cultura de origem havia sido levantada por Deus para dominar o mundo[28], outros, por sua vez, sequer tinham consciência de que o evangelho que pregavam tinha muito mais do que sotaque estrangeiro.

A pregação no tempo das revoluções: uma homilética das libertações, dos carismas e das mídias: As transformações iniciadas no século XVIII se intensificaram de tal forma nos séculos XIX e XX que Hobsbawn[29] passou a designar esse período como a “era das revoluções”: políticas, econômicas, culturais, tecnológicas, entre outras. Dentre esses acontecimentos, como observou Manuel Castells, destacam-se, no final do século XX, o processo de globalização, que promove a interdependência econômica global; o colapso do estatismo soviético, que alterou significativamente a geopolítica global; mas, principalmente, a “revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação”, que está “remodelando a base material da sociedade”[30].

A prática homilética experimentada nesse período não ficou indiferente e engajou-se igualmente colocando seu produto, isto é, suas prédicas, a serviço das revoluções ou das contra-revoluções. Desse período, merecem ser destacadas, além da tradicional, as propostas homiléticas dos setores progressistas da igreja, além da dos movimentos carismático-pentecostais e, mais recentemente, dos neopentecostais com suas incursões pela mídia. Podemos, assim, distinguir didaticamente uma homilética das libertações, uma homilética dos carismas e uma homilética das mídias.

8 Homilética contemporânea

Após esta breve revisão histórica, conclui-se que não poderia haver uma definição única para a homilética, porque não há de fato uma só homilética. O que se tem são homiléticas. Em cada época, o discurso religioso procurou cumprir seu papel da maneira que julgava ser a mais adequada, influenciando e sendo influenciado por seu tempo. Naturalmente, as gerações homiléticas sucessoras ora se sentiam herdeiras das anteriores, ora as rejeitavam como filhas rebeldes. Mas de uma forma ou de outra, não puderam se livrar completamente de suas influências e de suas raízes.

A práxis homilética é essencialmente dependente de seu contexto histórico-temporal. Por isso, o pregador, ou o teólogo, “deve percorrer um duplo caminho: o do pensamento ascendente e o do pensamento descendente” — este serviço, o pregador o faz mediante o que ele chamou de Ankündignung, ou “anúncio de um acontecimento por vir” e Verkundung, ou “anúncio do que está acontecendo”.[31]

Karl Barth teria sido o primeiro a se referir às três formas da Palavra de Deus: pregada (ou proclamada), escrita e revelada. Na analogia trinitária de Barth, cada forma da Palavra se relaciona com uma das pessoas da Trindade: Deus o Pai Criador com a Palavra revelada, Deus o Filho Reconciliador com a Palavra escrita e o Espírito Santo Redentor com a Palavra proclamada — essas três, no entanto, são uma única e só Palavra de Deus.[32] Portanto, Karl Barth eleva a prédica à categoria de Palavra de Deus, no mesmo nível da Palavra escrita e da Palavra revelada.

Um novo elemento é acrescentado por Dietrich Ritschl, para quem o que há de especial com a prédica é que esta “oferece o que o mundo não pode oferecer”, na medida em que “cada sermão deve expressar a vontade graciosa de Deus em Cristo Jesus para estar em solidariedade com os pecadores” [33]. A novidade do pensamento de Ritschl está na compreensão de que “nós [os pregadores] não convertemos os outros, mas temos que nos converter aos outros”.[34] Nesse sentido, a homilética, em lugar de se ocupar da oratória, deveria se ocupar de um tipo de escutatória, para que a prédica possa ser transformada pela cumplicidade com a experiência (o “pecado”) da comunidade para a qual é pregada.

Pode-se, contudo, entender a prédica como “meio pelo qual a revelação atua” e o homileta, como sendo o mediador dessa atuação. Se, de fato, “a pregação é o meio que Deus estabeleceu para comunicar aos homens seu plano salvífico”[35], e, como afirmara Domenico Grasso, a Palavra de Deus acontece na relação revelação—homileta—congregação.

Note-se que, de uma forma ou de outra, no acontecimento homilético, está sempre presente a relação entre o pregador, a revelação e a vida das pessoas no seu contexto cultural e cotidiano. Para a conceituação da homilética, portanto, é preciso considerá-la em relação ao seu tempo e lugar.

Para concluir, pode-se dizer, então, que a homilética é o exercício que cada homileta faz na tentativa de comunicar e atualizar a Palavra de Deus para o seu tempo e a sua gente, convertendo-se à Palavra, ao seu tempo e à sua gente, permanentemente.


[1]     Vd. KIRST, Nelson. Rudimentos de homilética. 3 ed. São Leopoldo: Iepg; Sinodal, 1996.  p. 17-18.

[2]     BURT, G. Manual de homilética. Trad. De Luiz de Lacerda. 3 ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1954. p. 7.

[3]     Cf. descrição da celebração eucarística feita por Justino Mártir, na primeira metade do séc. II, in GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 65-67.

[4]     Id., ibid, p. 17-18.

[5]     A expressão “Primeiro Testamento” ou “Bíblia Hebraica” substituirá, sempre que possível, a expressão “Antigo Testamento”, bem como a expressão “veterotestamentário”, por se entender que estas últimas carregam uma conotação pejorativa em relação aos escritos do cânon judaico. O autor encontrou a mesma postura em HOLBERT, John C. Preaching Old Testament: proclamation & narrative in the Hebrew Bible. Nashville: Abingdon Press, 1991. 128 p. Cf. nota 1 da introdução. Esta nomenclatura vem sendo observada amiúde pelos mais destacados biblistas contemporâneos.

[6]     MONLUBOU, Louis. Os profetas do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1986. p. 36. (Cadernos bíblicos 39). Ver também AMSLER, S. et.al. Os profetas e os livros proféticos. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1992, 463 p. Biblioteca de ciências bíblicas.

[7]     Cf. KERR, John. History of preaching. 2 ed. London: Hodder And Stoughton. 1938. p. 34-38 (407 p).

[8]     Sobre o tema dos “logia” de Jesus, há um texto que pode ajudar oferecendo outras leituras, a saber, CERFAUX, Lucien. Jesus nas origens da tradição. São Paulo: Ed. Paulinas, 1972. p. 55 ss.

[9]     Cf. PATTISON, T. Harwood. The history of cristian preaching. Philadelphia: American Baptist Publication Society, 1903. p. 35-37 (411 p.).

[10]    Cf. Id. Ibid., p. 48.

[11]    Cf. JUNGMANN, J. A. Herencia litúrgica y actualidade pastoral apud BOROBIO, 1990, p. 84-85.

[12]    BOROBIO, Dionisio (org.). A celebração na Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 1990. p. 101. (474 p.) (V. 1, Liturgia e sacramentologia fundamental).

[13]    Cf. GARVIE, Alfred Ernest. The christian preacher. New York: Charles Scribner’s Sons, 1921. International Theological Library. p. 107 (490 p.).

[14]    Cf. Id., ibid.,  p. 107-108.

[15]    KERR, 1938, p. 126 (tradução nossa).

[16]    Vd. In NIEBHUR, Richard; WILLIAMS, Daniel D. (eds.) The ministry in historical perspectives. New York: Harper & Brothers Publishers, 1956. p. 110. [trad. nossa].

[17]    Cf. id., ibid., 1956, p. 110.

[18]    Cf. id., ibid., p. 110-116.

[19]    Cf. id., ibid., 1956, p. 133.

[20]    Para uma discussão mais aprofundada dos usos e desusos das vestes litúrgicas, ver TESCHE, Silvio. Vestes litúrgicas: elementos de prodigalidade ou dominação? São Leopoldo: Sinodal, Iepg, 1995. p. 63 e 110. 

[21]    Vd. tb. TILLICH, Paul apud TESCHE, Silvio. Vestes litúrgicas: elementos de prodigalidade ou dominação? São Leopoldo: Sinodal, Iepg, 1995. p. 112.

[22]    Cf. ROSE, Michael in SCHNEIDER-HARPPRECHT, Cristoph. Teologia prática no contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, ASTE, 1998. p. 149-150 (p. 146-157).

[23]    Ver JOÃO DA CRUZ, São. Poesias completas. Tradução de Maria Salete Bento Cicaroni; prefácio de Felipe B. Pedraza Jimenez. São Paulo: Nerman : Embajada de Espana / Consejeria de Educación, 1991. 123 p., il. Colecao orellana, 3. Ver também AVILA, Teresa. Interior castle. New York: Image Books, 1944.

[24]    Cf. ROSE, 1998, p. 151.

[25]    HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o povo chamado metodista. São Bernardo do Campo: Editeo; Rio de Janeiro: Pastral Bennett, 1996. p. 214. Ver também RAMOS, Luiz Carlos. A prática homilética de John Wesley. Caminhando. Ano IX, n. 13, 1 semestre 2004. São Bernardo do Campo: Editeo. p. 133-152.

[26]    Sobre Isso, ver RAMOS, Luiz Carlos. A prática homilética de John Wesley. Caminhando, v. 9, n. 13, primeiro semestre 2004. São Bernardo do Campo: Editeo, 2004. p. 133-152.

[27]    Cf. Id., ibid., p. 240.

[28]    Tornou-se muito popular entre os estadunidenses a doutrina pela qual o povo dos Estados Unidos foi eleito por Deus para comandar o mundo. Tal doutrina justificaria o projeto expansionista norte-americano. A doutrina ficou conhecida pela expressão Destino Manifesto, cunhada pelo jornalista novaiorquino John O’Sullivan, na publicação intitulada Democratic Review, por volta de 1840.

[29]    A expressão “era das revoluções” foi cunhada por HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848 (The Age of Revolution: Europe 1789-1848). 16 e. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 528 p.

[30]    CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 21.

[31]    Cf. BARTH, Karl. A proclamação do Evangelho: homilética. Trad. Daniel Sotelo e Daniel Costa. 2 ed. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 15-16.      

[32]    Cf. RITSCHL, Dietrich. A theology of proclamation. Rchmond: John Knox Press, 1960. p. 29.

[33]    Id., ibid., p. 13-23.

[34]    Id., ibid., p. 13-23.

[35]    GRASSO, Domenico. Teologia de la predicación. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1968. p. 97-98.

3 Comentários

  1. Excelente artigo num apanhado histórico sobre homilética! Para quem se interessa pelo tema como eu é uma preciosidade. Obrigado!

  2. Professor Valdesino Urils 06/07/216
    Seu artigo me deu boas ideias. coloquei em cheque com meu conhecimento sobre o tema e declaro ter aprendido algo mais. sugiro continuar neste esforço em abençoar tantas e tantas pessoas mudo afora. obrigado. Valeu!

  3. Gostei muito da sua abordagem. Aproveitei alguns recortes para adaptar em minhas aulas de homilética no Sem. Teol. Batista Goiano

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