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T e x t o s & T e x t u r a s

Divina comunidade

Photo by Ibrahim Rifath on Unsplash

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O Domingo da Santíssima Trindade é comemorado, muito apropriadamente no meu entendimento, no domingo subsequente ao dia de Pentecostes. Isso porque entende-se teológicamente que a obra de Deus está completa:

  • O Pai-Criador fez os céus e a terra e tudo o que neles há, inclusive o ser humano que se perdeu em seu egocentrismo;
  • o Filho-Salvador, que por sua vida e paixão redimiu o ser humano caído; e
  • o Espírito-Consolador foi derramado para que os seres humanos tenham forças e alento para caminhar como novas criaturas, rumo à consumação do Novo Mundo de Deus.

Mas precisamos ser honestos: Essa conclusão é resultado da leitura dogmática das Escrituras e, de fato, a palavra “trindade” não aparece uma única vez nas páginas sagradas.

Diferente da abordagem literária das Escrituras, a leitura dogmática exige coerência racional plena. É inevitável que surjam questionamentos do tipo: Afinal, somos monoteístas ou politeístas? Cremos em um ou em três deuses? Se o dogma exige raciocínio lógico, como podem três serem um?

Essa sempre foi uma doutrina muito debatida ao longo da história da Igreja, e motivo para rixas, perseguições, prisões, torturas, e execuções de quem pensasse ou dissesse coisa diferente do que estabelecia a ortodoxia —que, diga-se de passagem, era sempre definida pelo lado vencedor.

Contudo as narrativas são menos cartesianas que os dogmas. Elas são tão contraditórias como a vida, como a fé. Tertuliano dizia: “Credo quia absurdum”, “creio porque é absurdo”. Isto é, se fosse lógico precisaríamos simplesmente entender. 

As contradições abundam nas histórias bíblicas. Ninguém é cem por cento bom ou mal, o joio está lá, entrelaçado com o trigo. Uma mesma pessoa é descrita como um crápula sanguinário, numa página, e também como alguém “segundo o coração de Deus”, em outra página.

Um dos textos bíblicos indicados pelo Lecionário dominical para o dia da Santíssima Trindade é o de Gênesis 1 e 2, juntamente com o Salmo 8, 2 Coríntios 13 e Mateus 28.

Eu, particularmente acho tais reverências muito apropriadas para os nossos dias, especialmente Gênesis 1 e 2, não somente por sua ligação com o dogma da Trindade, mas por causa do momento que estamos vivendo no nosso país e no mundo:

Intolerâncias, fundamentalismos e crueldades tamanhas que levam pessoas a se acharem no direito de impedir os outros até mesmo de respirar. Também a destruição do meio-ambiente sem precedentes, com o aval, o incentivo e a cumplicidade de autoridades inescrupulosas, que deveriam antes zelar pela relação harmoniosa com o nosso maior patrimônio: a natureza, nossa casa comum, nossa oikoumene. A propósito, na última sexta-feira, dia 5 de junho, celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente. E, para nossa tristeza, o Brasil não teve muito que comemorar, mas muito que lamentar.

Voltemos, então, ao texto de Gênesis 1 e 2.

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O livro de Gênesis conta duas histórias distintas da criação. Diz-se da primeira, narrada no capítulo um, que é cosmocêntrica, pois pretende descrever sistematicamente como o cosmo inteiro foi criado (em sete dias) por ‘Elohiym (deuses), ao passo que a segunda, narrada no capítulo dois, é antropocêntrica, pois seu centro narrativo é a formação do ser humano e a sua condição no mundo criado (em um único dia) por Yaweh.

A referência à Trindade aparece indiretamente na primeira dessas narrativas (vv. 1-3), onde, curiosamente, a palavra “Deus” aparece no plural:

“No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz.”

Os teólogos, treinados a ver o invisível, se deram conta de que aí estava implícito o fundamento do dogma da Santíssima Trindade: 

  • O Deus que criou os céus e a terra seria a primeira Santa Pessoa; 
  • O fato de que o ato criador se deu por meio da Palavra de Deus, quando diz “— Haja luz”, nos permite identificar aí a segunda Pessoa Santa, cf. João 1.1-3: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.”
  • E a menção ao fato de que o “o Espírito de Deus pairava por sobre as águas” evidencia que, desde o início, lá estava também o Espírito Santo. Todos, portanto, pré-existentes e consubstanciais, três pessoas, uma só natureza.

Não vamos nos deter aqui em sutilezas, mas apenas mencionaremos algumas questões de passagem para aqueles e aquelas que queiram mais tarde se debruçar sobre elas: A palavra “Espírito”, em hebraico Ruwach, é um substantivo feminino, e poderia ter sido traduzido por aragem, brisa, ventania, mente entre outras. Já o termo “logos”, de João 1, poderia ser traduzido pelo substantivo feminino “palavra”, mas os tradutores optaram pelo masculino “verbo”. 

Em síntese, acabamos ficando com uma divina comunidade composta unicamente de pessoas masculinas. Mas esse é assunto para outro dia.

Tendo criado do nada os céus e a terra, e tudo o que neles há, por último o ser humano é criado a partir da terra. Ou seja, a matéria prima do universo é o nada, mas a matéria prima do ser humano é o universo. 

“Então, formou o SENHOR Deus ao ser humano do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o humano passou a ser alma vivente.”

* * *

A segunda narrativa da criação, em Gênesis capítulo 2, menos cosmológica e mais antropológica, nos aponta para o lugar do ser humano na ecologia universal. 

Deus criou os céus e da terra e da terra (adamahformou  o homem/humano/terráqueo (adam). O verbo formar (yatsar) sugere a ação artística do escultor, daquele que molda o barro, modela a argila para produzir criativamente um utensílio ou uma obra de arte.

Eu já havia dito em outro lugar (ver https://www.luizcarlosramos.net/e-deus-plantou-um-jardim/) que a implicação radical do entendimento dessa passagem bíblica é que matar a terra é cometer suicídio. 

E não ter consciência da nossa irmandade com o planeta é deixar de ser “alma vivente”, é rejeitar o “sopro” divino, é perder o “fôlego da vida”. 

Ao contrário, ser “alma vivente” implica preservar o planeta, zelar por sua integridade, pois nós somos a terra que respira, nós somos a terra que sente, nós somos a terra que pensa, a terra que tem consciência, a terra que proclama a glória de Deus.

A cosmogonia judaico-cristã complementa a história da criação dizendo:

“E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o humano que havia formado. Do solo fez o SENHOR Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal. […] Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem/humano e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gn 2.4ss)

Cultivado esse maravilhoso jardim, Deus “pôs nele o homem/humano/terráqueo (adam) que havia formado/moldado”. Deus pôs terra sobre a terra. A primeira função humana, portanto, foi a de adubar, fertilizar, a terra.

A moldura da narrativa se fecha dizendo:

“Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem/humano/terráqueo e o colocou o jardim do Éden para o cultivar e o guardar”.

Estas, pois, são as duas principais funções atribuídas aos seres humanos: cultivar e guardar o jardim.

De um lado, o termo hebraico que designa o ato de “cultivar” (’abad) significa também trabalhar, servir, executar, cuidar, laborar, lavrar, ser responsável por (também é a palavra empregada para cultuar)… Por outro lado, o termo que designa “guardar” (shamar), significa cercar, proteger, vigiar, cuidar, observar, contemplar, reservar, preservar, salvar, assegurar, olhar por… 

Com isso, ficamos sabendo que Deus quer de nós que sejamos servos do jardim laborando pela sua promoção para que seja produtivo, e sua proteção, para que seja preservado.

Por fim, chama a atenção o fato de que Deus também plantou a “árvore da vida no meio do jardim e também a árvore do conhecimento do bem e do mal”. Esta última não deveria ser tocada sob nenhum pretexto. Trata-se de uma reserva ecológica, uma área restrita que a humanidade jamais deveria violar, localizada bem no centro do Éden.

Com isso, Deus dava a entender que há regiões do planeta que devem permanecer virgens, livres do contato humano —tais como os resquícios de mata atlântica, as nascentes de água nas serras—, os lugares dos quais nossa existência depende, nos dias de hoje. O equilíbrio ecológico depende desse respeito que lhe devemos. Violar essa ordem divina é cometer pecado grave.

Os seres humanos violaram essa regra a tal ponto de não mais haver jardim para que dele sejamos expulsos. Nós é que terminamos por expulsar de nós o jardim que Deus nos deu.

Oxalá entendamos de uma vez por todas que o respeito e a preservação não são questões marginais, mas têm que estar no centro da nossa vida. As reservas ecológicas não devem ficar restritas às longínquas, descuidadas e amazônicas florestas, mas no centro da nossa casa, do nosso bairro, da nossa cidade.

Concluo convocando você a renovar o compromisso que a nossa fé no Triuno Deus —Pai, Filho e Espírito Santo—, nos impõe, que é o de garantir o acesso ao fôlego da vida a todos, especialmente àqueles e àquelas que, durante tanto tempo, têm sido pisados e esmagados pelo pecado do preconceito e da intolerância, da arrogância e do ódio, por aqueles que insistem em nos sufocar e querem nos impedir de respirar. 

Que Deus torne a soprar sobre nós o fôlego da vida de modo que possamos continuar a ser almas viventes, para a sua honra e a sua glória.

* * *

Oremos:

Ó Deus Eterno,
Ensina-nos a com(+)viver com a natureza:
A amar sua beleza,
A respeitar sua força,
A resistir à sua fúria.

Ajuda-nos
A proteger os seus brotos
A desfrutar de suas sombras,
A partilhar os seus frutos.

Envia teu Espírito e renova a face da terra!
Envia teu Espírito e renova a face da fé!
Envia teu Espírito e renova a face da esperança!
Envia teu Espírito e renova a face do amor!
Envia teu Espírito e renova a face da vida!

Amém!

Reverendo Luiz Carlos Ramos
Domingo da Santíssima Trindade, 2020

(Pregado pela primeira vez na Igreja Batista Nazareth, Salvador, BA.

2 Comentários

  1. Sua inspiração nos impulsiona a buscar a fonte de toda essa sabedoria.

  2. Seus textos são tão bonitos, que dá vontade de passar um café, fechar a porta e chamar Deus para conversar.

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