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T e x t o s & T e x t u r a s

Jejum, oração & esmolas

Introdução

Os textos bíblicos que lemos hoje nesta celebração são sugeridos pelo Lecionário para a Quarta-feira de Cinzas, que marca o início da Quaresma. Esta é uma peregrinação de 40 dias de penitência e conversão, seguida por outros 50 dias de júbilo na grande festa da Ressurreição.

Gosto de pensar neste período como uma peregrinação que nos conduz das Cinzas ao Fogo.

Sim, começamos com a Quarta-feira de Cinzas, recordando nossa humilde condição humana. Somos criaturas nascidas do pó da terra que, por um tempo, como dizia Pe. Vieira, pelo sopro da vida dado pelo Criador, nos tornamos pó levantado, terra consciente: que pensa, que sente, que sonha…

… Para logo depois voltar a ser pó caído, corpo em decomposição: “Tu és pó e ao pó retornarás!” (Gn 3.19). 

Essa é a via crucis de todos nós. 

Mas ainda não é o fim: no horizonte, sempre haverá a esperança da ressurreição, a derradeira Páscoa, pela qual todos nós seremos pó levantado para nunca mais cair, para reinar com Cristo, para celebrar eternamente a plenitude da vida abundante que Jesus prometeu. 

Piedade

No Evangelho de Mateus, que ouvimos hoje, são apresentados os sinais que acompanham o homem piedoso, a mulher piedosa: o jejum, a oração e a esmola. Uma pessoa piedosa nos templos bíblicos — tal como se dizia de Nicodemos, do Centurião Cornelius, de Lídia, para citar apenas alguns — procedia assim: cultivava o hábito de jejuar, orar e dar esmolas.

Essas práticas têm sido muito mal compreendidas pela cultura ocidental. Nós não entendemos muito bem o que são. Alguns religiosos que eu conheço, quando conclamam sua comunidade para jejuar, ou mesmo quando as pessoas individualmente se dispõem a essa prática, é com o objetivo de alcançar algum favor divino. Em sua lógica, pensam que se Deus os vir sofrendo, famintos, abatidos, ele se compadecerá e lhes concederá a graça almejada. Quando oram, pensam que precisam informar a Deus sobre algo que ele ainda não saiba, convencê-lo de que ele deve intervir e, se ele tardar, entendem que é seu dever continuar insistindo teimosamente, como se Deus fosse um “juiz iníquo”, até que se canse de ser importunado e resolva fazer o que os pais fazem com crianças mimadas: “Toma lá e agora me deixe em paz!”

E o ato de dar esmolas, então? Essa prática não é muito frequente entre nós. Na cultura ocidental, prevalece a ideologia de que os pobres, famintos e indigentes são assim porque são preguiçosos e, portanto, merecem estar onde estão. Alguns poucos, por pena, medo ou pela comodidade de não continuar a ser importunados, resolvem tirar umas míseras moedas e entregá-las ao mendigo que lhe estende a mão súplice. 

No entanto, isso não é o que significa ser piedoso/piedosa. No espírito bíblico, de acordo com a cultura oriental, essas práticas mal compreendidas têm um sentido muito diferente. Jejuar, orar e dar esmolas são práticas salutares, sim, que visam à saúde e ao bem-estar do indivíduo e da comunidade.

Jejum

Retomemos o conceito de jejum: esta é uma prática de cuidado com o próprio corpo. De tempos em tempos, é preciso que nos desintoxiquemos. Privar-nos de certos alimentos por determinados períodos pode nos livrar de muitas complicações e enfermidades. Quando não somos sábios o suficiente para fazermos isso por nós mesmos, chega uma hora que o próprio corpo o reivindica. Adoecemos, recorremos aos médicos, e eles nos impõem dietas, às vezes severas, e lá vamos nós, para um jejum compulsório. 

Não são apenas certos alimentos que nos causam mal, há muitas outras coisas: há palavras tóxicas, há redes sociais tóxicas, há pessoas tóxicas, há até religiões e religiosos tóxicos. Para mantermos a nossa integridade, devemos nos abster deles com certa regularidade.

Oração

Se o jejum é uma maneira de cuidarmos da nossa relação com o nosso próprio corpo, a oração é uma maneira de cuidarmos da nossa relação com Deus. 

Para os orientais, a oração é o mesmo que meditação. E não consiste em falar, mas em respirar: inspirar/viver — expirar/morrer. A oração confronta a nossa efemeridade com a eternidade. Orar não é importunar Deus, mas permitir-nos estar na sua presença. Orar não é falar, orar não é calar, orar é estar constantemente na presença do eterno para podermos viver intensamente o efêmero.

Esmolas

Resta ainda falarmos sobre o sentido bíblico da esmola. Esmola vem do Grego eleemosyne, que significa “piedade, mercê, favor”, e, para usar uma terminologia mais contemporânea, “solidariedade”. Por alguma razão, quase injustificável, no senso comum, adquiriu o significado de “donativo, caridade”. Quem dá esmolas com esse sentido de “donativo”, provavelmente pensa que, fazendo isso, vai impressionar Deus, que haverá de olhar lá do Céu e pensar: como ele é bonzinho, por causa disso vou recompensá-lo desmesuradamente. Cá para nós, se Deus for mesmo justo, ele não haverá de se impressionar com donativos que não nos custem sacrifício algum.

A esmola, no sentido bíblico, é o resultado do jejum e da oração: sim! Cuidando do nosso corpo, nós reduzimos o consumo e assim sobram mantimentos na dispensa. A oração então preenche o tempo que usávamos para nos empanturrar. 

Mas o que fazer com o que ficou acumulado na dispensa? Os capitalistas dirão: “Agora, sim, tenho no celeiro grande quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se.” E Deus responde lá do alto: “Tolo, esta noite te pedirão a tua alma” (Cf. Lc 12.19-20)

Dar esmolas, no sentido evangélico, é praticar a solidariedade. Ajudar o próximo não para amenizar nossa consciência pesada ou querer ficar bem com Deus, mas por amor ao próximo.

Hoje podemos fazer isso de maneira muito mais eficiente por meio das organizações que se dedicam a realizar essa tarefa de maneira colaborativa e organizada. Ajudando sistematicamente instituições sérias podemos fazer muito mais pelo próximo do que por meio de iniciativas esporádicas e individuais. Não obstante essas não devam ser de todo omitidas

Conclusão

Em poucas palavras: a prática da piedade — jejuar/orar/dar esmolas — é a expressão cabal do grande mandamento: 

“Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” e “amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
(Mt 22.37-39) 

Jejuar é amar a si mesmo, orar é amar a Deus e dar esmolas é amar o próximo. 

Na Quarta-feira de Cinzas, iniciamos com Cristo, de maneira simbólica e litúrgica, nossa “Via Crucis”.”

Durante quarenta dias, trilharemos as sendas áridas do deserto da alma humana, orando, jejuando e praticando a solidariedade. Nossa melhor oração será o silêncio contemplativo e a escuta atenta do que Deus tem a nos dizer, entre um sopro e outro da suave brisa do Espírito. Nosso melhor jejum será o dos pensamentos perversos, das palavras ofensivas e dos gestos violentos. A melhor esmola, isto é, a solidariedade autêntica será aquela que estende a mão à mais pequenina, frágil e ameaçada criatura do planeta e da nossa vizinhança.Nesse tempo de recolhimento, nos absteremos de extravagâncias, de interjeições efusivas, de gestos bruscos e ameaçadores… 

… Até que irrompa no horizonte aquela ensolarada manhã Pascal, na qual se ouvirá o grito de júbilo anunciando que a Vida venceu a morte. Por enquanto: Oração, jejum e esmolas serão os sinais da nossa reconciliação com Deus, conosco mesmos e com o próximo.

* * *

Prédica proferida pela primeira vez na Igreja Batista Nazareth, Salvador Bahia, em 18/02/24. 
| Pregado pela segunda vez na Capela da Serra em 25/02/24 | Quaresma

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