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T e x t o s & T e x t u r a s

O Sermão do Morro

 Reflexões sobre Mateus 5 e Lucas 6

Candido Portinari: Favela e Músicos

Se Jesus vivesse no Brasil em pleno século 20 (ou 21), e seu famoso Sermão do Monte fosse relatado por um Mateus contemporâneo, tal discurso talvez recebesse o título de “Sermão do Morro”, pois penso que Jesus o pregaria em lugares como a Favela da Rocinha, ou o Morro do Sabão.

Se, por outro lado, o repórter fosse um Lucas contemporâneo, talvez o título fosse “O Sermão da Baixada”. Pois o Lucas bíblico diz que Jesus fez esse discurso numa planura. Então, eu imagino Jesus pregando na Baixada Fluminense. Ou nas várzeas alagadas.

Não sei sua opinião, mas para mim, faz muita diferença se penso em Jesus pregando esse sermão para os moradores da favela. Nesses lugares considerados redutos de pobreza, violência, fome, crimes, a voz de Jesus parece ressoar como o som de mil trovões (ou de muitos “Rock in Rio”), proclamando:

Bem aventurados os pobres…

Muitos teólogos e biblistas escreveram páginas e páginas discutindo se “pobre” é pobre ou se é outra coisa. Mas, se imagino Jesus pregando na favela, essa discussão parece tão tola. Os empobrecidos não filosofam sobre a pobreza, eles a sofrem. O que sei é que Jesus os ajuda a encontrar réstias de felicidade, em meio aos labirintos do morro. E a Voz do que clama no morro anuncia:

Bem aventurados os que têm fome…

É verdade! Jesus se referia aos que anseiam por justiça. Mas na favela, enquanto a barriga vazia ronca, os intestinos se reviram pelo pavor dos “justiceiros”. Estes últimos se supõem famintos de justiça. Mas na verdade se alimentam de entranhas e sangue humanos – a mais torpe das refeições injustas.

A verdadeira fome (a da barriga e a do coração) é amenizada por Jesus, quando abençoa o povo em seus casebres, enquanto maldiz os vampiros-urbanos e suas chacinas. Ora, Jesus oferece seu próprio corpo e sangue como alimento para a vida eterna. Dele é a Voz que ecoa entre os barracos:

Bem aventurados os pacificadores…

Do alto do morro, se ouvem os gritos de um emaranhado de dores. São partos prematuros de mães prematuras. São estampidos mortais que se projetam vorazes sobre inocentes e culpados. São picadas letais, fumaças corrosivas, pós alucinantes. São órfãos que deixam órfãos. São tantas as dores…

E Jesus consola essa gente explicando que só podemos ser felizes quando nos tornamos pacificadores. Um pacificador é alguém que faz parar a dor, tornando-se um construtor da paz. Seremos felizes quando enfrentarmos as dores para substitui-las pela paz.

Mas a Voz não se limitou aos morros e baixadas, ela também invadiu as mansões, os templos e mercados da capital (ou deveríamos dizer do capital):

Mas ai de vós, os ricos…

Fico imaginando Jesus em um shopping center, dirigindo estas palavras aos ricos. Embora a maioria de nós não seja rica, estamos em melhor condição do que muitos. E devemos ter consciência de que muito das nossas mordomias só são possíveis porque, em contrapartida, um número incontável de pessoas sofre privações. Se o fato de termos fartura parece consolo, diante do meu próximo carente isso se transforma num tormento. Por isso a Voz incomoda a consciência:

Mas ai de vós, os que estais fartos…

Imaginemos Jesus dizendo essas palavras num restaurante desses de rodízio de carne. Como poderíamos ter uma boa digestão sabendo que essa é uma “injusta refeição” (como cantava Maraschin)?

Não é de se estranhar que muitas das doenças dos abastados e colunáveis dos nossos dias só são curadas mediante rigorosa dieta. E, aqui, a medicina assume ar sacerdotal proclamando rigorosos “jejuns” a penitentes e obesos pacientes. Vai-se longe o tempo em que os cristãos praticavam o jejum para poderem sentir a alegria dos bem-aventurados. Por isso, quem tem ouvidos para ouvir, ouça:

Mas ai de vós, que agora rides…

Já imaginaram Jesus invadindo os faustos programas dos domingões, ou os desses roedores transistorizados, para dizer que seu divertimento se tornará em pranto?

A comédia serve para desviar a atenção da tragédia.  “A minha gente sofrida esqueceu-se da dor, pra ver a banda passar…” (Chico Buarque). Mas, depois que a banda passa e tudo volta ao seu lugar, resta uma trágica realidade. “Ai de vós que agora rides porque haveis de lamentar e chorar”.

É por essas e outras, que quando estou farto e gargalhando, às vezes suspendo o riso, olho pro morro mais próximo e suspiro uma prece que aprendi:

“Senhor, enquanto muitos querem comer,
Mas não têm comida;
E muitos têm comida,
Mas não podem comer;
Nós, que temos comida e podemos comer,
Rogamos-te em favor destes e daqueles”.
Amém.

Luiz Carlos Ramos

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Um comentário

  1. Excelente prédica: exposição profunda do texto, apresentada com rara simplicidade e atualidade. Partindo da base bíblica, o pregador, utilizando a arte da contextualização, transporta fielmente o texto para os nossos dias e, em linguagem poética, entra no nosso mundo significativo (diferentes ouvintes/leitores) e pinta quadros vivos, desafiando-nos ao envolvimento, ao acolhimento, à realização. Pregadores iniciantes e experientes – todos nós – encontramos nesse texto um modelo para alcançar e marcar os ouvintes.
    Deus o abençoe, Dr. Luiz Carlos Ramos.

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