Para isto existem os desertos: para serem atravessados
Lucas 4.1-14: 1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto, 2 durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo. Nada comeu naqueles dias, ao fim dos quais teve fome. 3 Disse-lhe, então, o diabo: Se és o Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão. 4 Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem.
5 E, elevando-o, mostrou-lhe, num momento, todos os reinos do mundo. 6 Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. 7 Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua. 8 Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto.
9 Então, o levou a Jerusalém, e o colocou sobre o pináculo do templo, e disse: Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo; 10 porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; 11 e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. 12 Respondeu-lhe Jesus: Dito está: Não tentarás o Senhor, teu Deus.
13 Passadas que foram as tentações de toda sorte, apartou-se dele o diabo, até momento oportuno.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
(Álvaro de Campos, in “Poemas”, heterónimo de Fernando Pessoa)
O Vento levou Jesus para o deserto. Coisa estranha que só os místicos compreendem… ou quase. Por quarenta dias, Jesus tenta ser um discípulo de João, mas em lugar de clamar e gritar, preferiu ouvir o deserto. Foram dias de escuta nos quais o número humano, demasiado humano (40), repercutia sua densidade: dilúvio, escravidão, libertação, peregrinação, conversão, arrependimento…
Diz-se que, lá no deserto, Jesus encontrou-se com o advogado daquela patológica e esquizofrênica dissociação entre a ação e o pensamento. Esse diabo, supondo estar Jesus fragilizado no corpo, tentou seduzi-lo a separar a Palavra do Pão; julgando-o fragilizado de alma, a dissociar o poder do serviço; e suspeitando que Jesus estivesse fragilizado no espírito, tentou seduzi-lo a separar o divino do humano.
Ao final dessa travessia de 40 dias, agitado entre o Vento da Unidade e o turbilhão da desintegração, Jesus se decide definitivamente pelo Vento da Unidade, mesmo que isso implique no rompimento com seus egoísmos.
A ruptura com João também é evidente. Deixa a Voz do que Clama no Deserto, e se dirige para as gentes, para ser a Palavra que se Fez Corpo. O grito de condenação dá lugar à boa nova de salvação. Os rituais legalistas de purificação são substituídos por gestos de pura graça, perdão e solidariedade.
Há místicos que gostam dos desertos, mas muitos não conseguem entendê-los. Pensam que desertos são pra se morar neles. Não sabem que se o povoarem ele deixará de ser deserto. Desertos são, antes, lugar de travessia, de peregrinação…
Para sair do deserto há que se ouvir o Vento Sagrado da Unidade, e não separar o que Deus uniu: Pão e Palavra, Poder e Serviço, Deus e o ser Humano.
Daqui até a Páscoa, temos diante de nós um árido deserto a atravessar.
Para isso, ouçamos o Vento Sagrado da Unidade.
Reverendo Luiz Carlos Ramos†
(Para o Primeiro Domingo na Quaresma, Ano C, 2016)
Texto lindo sobre o papel do deserto, Luiz. O Senhor te abençoe todos os dias, especialmente em tempos tão “desérticos”. Grande abraço.
Obrigado, Rosa,
Forte abraço pra você também.
Luiz