Rubem Alves e a liturgia das palavras que dançam
Há pessoas que admiramos a distância, mas cuja admiração não sobrevive à proximidade. Não foi assim com o Rubem. Fomos vizinhos por longos anos. Encontrávamo-nos quase que diariamente, para conversar, trabalhar, comer juntos. Às vezes para fazer as três coisas ao mesmo tempo.
Sua companhia era sempre um acontecimento, por mais prosaico que fosse o motivo: o pagamento de uma conta, o agendamento de algum compromisso, a entrega de uma correspondência… Seu dom, meio parecido com o do rei Midas, era transubstanciar as coisas prosaicas e deixá-las encantadas.
Seu jeito de olhar o mundo era diferente, e quando ele nos dizia o que estava vendo, o mundo se transformava diante dos nossos olhos também.
Como veem, aquele longínquo e crepuscular milagre de Emaús continua a acontecer: No partir do pão, pela misteriosa dança das palavras, nossos olhos se abrem.
Não, diferente do outro Mestre, o Rubem não era perfeito. Mas, como aquele, era humano, demasiado humano.
Contudo, não estamos aqui para falar disso, não é mesmo? Estamos aqui porque queremos honrar a sua memória.
Diz o Bom Livro: “A quem honra, honra.” E é isso que eu quero fazer com este modestíssimo ensaio: Demonstrar os meus respeito, admiração e gratidão por esse extraordinário amigo, cuja ausência continua a nos inspirar e encher de saudade.
Peço licença para expressar estas palavras em nome de alguns amigos em comum, que formavam parte do que chamávamos de SPS do Rubão: Inês, que também foi coordenadora do Cebep e colaboradora do Rubem; Zé Lima, seu amigo de longa, longa data; Nádia, cujas perguntas rendiam fascinantes debates; Padre Paulinho, que apimentava nossas deliciosas conversas; Vastí, que com o legado do Rubem revolucionou educação de uma cidade inteira; Esequiel, fiel amigo de todas as horas, que o acompanhou até os seus últimos momentos, e, entre outros, este “humilde escrevinhador”, que teve a sorte de ser contemplado com generosidade por aqueles olhos mansos e bondosos.
Nestes dias, muito se disse, e se dirá do Rubem. Temo cansá-los com repetições desnecessárias. Mas já que me trouxeram até aqui…
O Rubem nunca deixou de ser pastor. Apascentava especialmente as palavras e nos apascentava com elas. Suas palavras faziam o pensamento da gente dançar. O Rubem nos engrandecia, nos enternecia. Depois de ouvi-lo, nunca voltávamos para casa do mesmo tamanho.
Há pessoas que são boas de serem lidas e outras de serem ouvidas. O Rubem era as duas coisas. Durante 14 anos, ele foi o principal conferencista das Semanas de Atualização Teológica do Cebep (Centro Ecumênico Brasileiro de Experiências Pastorais).
Nesse tempo, ouvimos muitas vezes coisas absolutamente inéditas, mas também muitas variações sobre os seus temas preferidos. Em todas as ocasiões, era como se o tempo e o espaço tivessem sido suspensos e todos levitássemos ou transcendêssemos ou fossemos transportados para alguma outra dimensão…
Suas falas conjugavam de maneira magistral aspectos lógicos e analógicos. Aliás, o Rubem era de uma lucidez admirável.
Com frequência, enveredava por longas digressões. Quando já quase ninguém se lembrava mais do ponto de partida, ele arrematava de maneira surpreendente, e então nos dávamos conta de como o seu pensamento estava cuidadosamente costurado.
A parte “analógica”, fica evidente pelas suas recorrentes e pertinentes metáforas. Rubem nunca precisou de “pauerpointes” para ilustrar suas falas. Dispensava as imagens porque a oficina na qual ele afiava suas ferramentas era a própria imaginação.
Suas palavras nos ajudavam a ver melhor.
Um sábio provérbio bíblico diz que “a boca fala do que esta cheio o coração”. Achei, então, que valia a pena recordar algumas das palavras que transbordavam de maneira recorrente do coração do Rubem e que, de certa forma, tornaram-se algum tipo de marca ou assinatura sua.
Esforcei-me para não ceder à tentação de fazer um recorrido de suas publicaçõesporque seria difícil selecionar o que não poderia deixar de ser citado.
Mas, uma vez que o tema dessa nossa conversa é a “liturgia”, arrisco dizer que dois pequenos livretos seus merecem ser mencionados, por sua pertinência à ocasião: “Creio na ressurreição do corpo” e “Pai Nosso”.
Eis algumas das palavras sacramentais que moravam no coração do Rubem:
Jardim, porque lá tem um pé de rosmaninho “igual a todos os demais exceto numa coisa”, dizia o Rubem, “foi meu pai que me deu”.
Manso, porque para ele Deus era “Pai… Mãe… de olhos mansos”.
Esperança, que, diferente do otimismo, “é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração”.
Saudade, “é preciso não esquecer a saudade” porque “Deus mora na saudade”,
Sacramento, irmão gêmeo da saudade, é “sinal visível de uma ausência que nos faz pensar em retorno”.
Quem entrava na casa do Rubem, logo percebia que aquilo era uma espécie de santuário. Não! não havia nada de piegas ou tipicamente religioso na decoração. Mas praticamente tudo era sacramental.
Na parede, pendurado, um quadro com três folhas secas. Por que alguém se daria ao trabalho de guardar uma folha seca? Vocês certamente sabem da história. Trata-se da folha de um caquizeiro descendente daquela única árvore que sobrevivera à bomba lançada sobre Hiroshima. Para quem vê o quadro pela primeira vez, vê só uma folha seca. Mas quem ouvia a história dessa folha contada pelo Rubem, ao olhar novamente para o quadro, passava a ver outra coisa: a folha fora subitamente transubstanciada em sinal visível da esperança ainda invisível de que a Vida sobreviverá.
Rubem nos fazia chorar.
Bem humorado, era pródigo em tiradas rápidas, como no dia em que fomos jantar juntos e, ao final, ele fez sinal ao garçom. O garçom se aproximou e perguntou: “A continha?” E o Rubem respondeu: “Espero que seja!”
Rubem nos fazia sorrir.
Certa vez, no final da década de 90, numa das Semanas Teológicas, o Reverendo Acir Ricky lhe fizera uma pergunta: “Estamos nas imediações de um novo milênio. O que você acha que vai acontecer com a Igreja no futuro?” Ele parou, passou a mão na cabeça calva, e sentenciou: “Será uma geração de religiosos ateus.”
Rubem nos fazia pensar.
No santuário do Rubem havia inúmeras referências aos seus “poetas mortos”: Pessoa, Guimarães Rosa, Walt Whitman, Cecília Meireles… E havia uma, em especial, que não estava na galeria dos mortos, mas que para o Rubem já era considerada imortal: Adélia Prado…
E o Rubem também tinha, no altar do seu coração, lugar para alguns “teólogos mortos”: Agostinho, Walter Rauschenbusch, Gandhi, Martin Luther King Jr., Albert Schweitzer…
Em 1995 o mundo recordou os 30 anos da morte de Albert Schweitzer e, na sua conferência da Semana de Atualização Teológica do Cebep daquele ano, o Rubem apresentou uma emocionante biografia do famoso teólogo, filósofo, médico que também era organista, considerado o maior intérprete de Bach do seu tempo. Schweitzer, prêmio Nobel da Paz (1952), que sempre serviu de grande inspiração ao Rubem, dedicara sua vida a servir como médico na paupérrima Lambarena, no Gabão.
Visivelmente emocionado, ao final da sua fala, naquela SAT, o Rubem nos convidou para que ouvíssemos uma das faixas do CD produzido para celebrar a data (os 30 anis da morte de Schweitzer) e o encontro da cultura europeia com extraordinária tradição africana: “Lambarena: Bach to Africa” (Hughes de Courson).
(A música a que nos referimos pode ser ouvida e a biografia escrita pelo Rubem pode ser lida aqui: https://www.luizcarlosramos.net/bach-to-africa/)
O Rubem dizia que o que nós pensamos de Deus não faz a menor diferença para Ele (Deus). Contudo, faz toda a diferença para nós mesmos. Porque as pessoas boas, de olhos mansos, creem num Deus bom e manso; mas as pessoas perversas, que têm os olhos injetados de ódio, creem num Deus cruel e vingativo…
Dize-me quem é o teu Deus e eu te direi quem és. O Deus de Rubem Alves era um Deus manso e bom, tal como era o Deus de Gandhi, Walter Rauschenbusch, Martin Luther King Jr., Albert Schweitzer…
O Rubem me contou numa tarde de outono, enquanto tomávamos um chimarrão, que esses foram alguns dos nomes que mais o inspiraram, e que foram eles que e o levaram a estudar teologia e querer ser pastor… “homens dos quais o mundo não era digno” (Hebreus 11.38).
Com base na análise que o Rubem fez da sua própria trajetória existencial, podemos distinguir três importantes fases da sua vida:
- A fase do pastor sonhador que queria salvar o mundo pela pregação da fé — aqui aparece o Rubem profeta, teólogo de esperanças.
- Frustrado por não conseguir salvar o mundo pela religião, veio a fase do educador que queria transformar a nação pela mediação política — aqui se destaca o Rubem guerreiro, precursor da Teologia da Libertação.
- Decepcionado duplamente por não ter conseguido salvar o mundo pela religião, nem libertar a nação pela política, o Rubem enveredou para a fase do jardineiro crepuscular, e passou a se contentar em construir e cultivar o seu próprio jardim por meio da poesia — nasce o Rubem poeta.
E é como jardineiro-poeta-contador de estórias que o Rubem conseguiu, finalmente, salvar e transformar o mundo. Ao menos o nosso mundo, o mundo dos que estamos aqui e que se permitiram conhecer e se ser tocados pela história de vida do Rubem.
Para arrematar nossa conversa sobre a liturgia das palavras que dançam, escolhi fazê-lo com uma estória que o Rubem contava (consta inclusive como epígrafe de um dos capítulos do livro “Pai Nosso”).
A editora Texto & Textura estava preparando uma edição belíssima dessa história, com ilustrações do talentoso artista Marcos Brescovici, mas infelizmente o Rubem partiu sem formalizar a autorização para sua publicação. De modo que, de certa forma, vocês terão aqui uma experiência inédita de ler um livro do Rubem que nunca saiu do prelo.
Escolhi essa estória, porque das que o Rubem contava, esta é a que mais gosto, e porque acabou por tornar-se a sua própria História:
Quando o Silêncio cobre o Nome
(Rubem Alves, com ilustrações de Marcos Brescovici)
Havia certa vez um homem que dizia o nome de Deus.
Quando o coração lhe doía por uma criança que chorava,
ou um pobre que mendigava,
ele andava até a floresta,
acendia o fogo,
entoava canções
e dizia as palavras.
E Deus o ouviu…
O tempo passou.
Voltou à mesma floresta.
Mas não carregava fogo nas mãos.
Só lhe restou cantar as canções
e dizer as palavras.
E Deus o atendeu ainda assim.
Um tempo mais longo se foi.
Sem fogo nas mãos,
sem força nas pernas,
não alcançou a floresta.
Mas do seu quarto
saíram as mesmas canções
e as mesmas palavras.
E Deus lhe disse que sim…
Chegou a velhice.
Nem floresta nem fogo ou canções…
Restaram as palavras.
E o mesmo milagre, ocorreu.
Por fim
sem fogo ou floresta,
sem canções ou palavras.
Só mesmo o infinito desejo
e o silêncio.
E Deus tudo entendeu…
⁂
Luiz
Carlos Ramos
Bacharel em Teologia, Mestre e Doutor
em Ciências da Religião;
Professor na Universidade São Francisco,
e coordenador do Curso de Bacharel em Teologia-USF;
é clérigo Metodista.
O presente texto foi preparado e apresentado para o evento internacional:
Repensando O Sagrado: Rubem Alves e a Teologia da Libertação,
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Juiz de Fora, MG, 27 a 29 de agosto
Crédito das fotos by José Lima Júnior
O que dizer senão, Luiz, obrigado pelo texto. Rubem, que saudade!